Infelizmente não temos visto muitas atrizes trans ou atores trans desempenhar papéis cis-género pois não?
Então não colhe o argumento de que não há implicações no gesto de colocar um ator cis a fazer um papel de mulher trans, dizendo que uma atriz cis também pode fazer personagens masculinas cis e vice versa, que todos podem fazer tudo.
Precisamente porque no atual estado da Arte todos não podem fazer tudo. Não é dada oportunidade hoje a atrizes e atores trans de desempenhar papéis cis. Na vossa lógica seria pão nosso de cada dia. Então porque não vemos acontecer com mais frequência?
Invalidar a beleza da invasão do palco que aconteceu no São Luiz dessa forma decorre do erro clássico de analisar as questões em abstrato, no vácuo, como se fossem exercícios de lógica, sem ter em conta o seu contexto, a sua História. Chega-se sempre a resultados fake. Na análise do que quer que seja é preciso ter em conta a História. Isto deve ser marxista pra caraças.
Claro que num mundo ideal sem classismo, racismo, sem transfobia, sem sexismo, sem preconceitos regionais, todos os atores estariam habilitados a fazer todos os papéis. Mas não é nesse mundo que vivemos (que alguns nele vivam, pode ser emancipador das suas consciências perceber que isso é privilégio só seu). Vivemos num mundo no qual um homem vestido de roupas historicamente usadas por mulheres ainda é um dispositivo cómico. Onde até há pouco tempo uma pessoa socialmente vista como branca pintar a cara de negro para fazer uma personagem negra era um dispositivo cómico. Felizmente hoje sabemos que ter atores brancos a fazer personagens negras é um exercício de violento mau gosto (sim porque o mau gosto é violento).
E pronto, a dívida histórica do povo português ao povo brasileiro só continua a aumentar. Viva Keyla Brasil.
Pedro Fernandes Duarte