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José Bento Ferraz: discípulo de Mário de Andrade

A 17 de março de 2005 falecia, em São Paulo, José Bento Faria Ferraz, que numa longa vida de importantes serviços prestados a nossa cultura, teve o privilégio de acompanhar, por mais de dez anos, na condição de secretário particular, o escritor Mário de Andrade.

Nascido em Pouso Alegre, Minas Gerais, a 30 de outubro de 1912, ainda menino, órfão de pai, morou em Jacareí, no interior de São Paulo, até chegar à capital paulista, onde matriculou-se no antigo e tradicional Ginásio do Estado.

Tempos depois, como aluno do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, foi aluno de Mário de Andrade e ali nasceria a sólida amizade entre ambos, que só terminaria com a morte do autor de Macunaíma. Foi também no Conservatório Dramático e Musical que conheceu sua companheira de vida por quase seis décadas, Sonia Sterman Ferraz.

Em entrevista concedida, nos anos 90, ao escritor Roniwalter Jatobá, para a revista Memória, contou que nos intervalos das aulas conversava bastante com Mário de Andrade sobre as inquietações econômicas que enfrentava ao lado da mãe e de uma tia, com quem morava. Mário, cuja irmã e secretária Lourdes estava para se casar, convidou-o então para trabalhar com ele. Era o ano de 1934 e por essa época iniciaria também seu trabalho como bibliotecário do Sindicato dos Bancários, sucedendo ao escritor Edgard Cavalheiro.

Suas atividades na casa de Mário, na rua Lopes Chaves, começavam bem cedo: “…eu chegava lá às 7h30, o Mário já estava de banho tomado… ele gostava muito de usar robe de chambre, tinha um desenhado por ele mesmo…era assim que trabalhava…sentado na escrivaninha que foi do pai dele…muito metódico…tinha uma memória prodigiosa…várias vezes o surpreendi declamando Ahasverus e o Gênio, de Castro Alves ou então I Juca Pirama, de Gonçalves Dias”.

Sobre os últimos tempos de vida e a morte prematura do escritor, acompanhou de perto a crise existencial profunda que o acometera após os 40 anos, concordando com Paulo Duarte, quando este afirmou que o autor de Paulicéia Desvairada foi conscientemente matando-se aos poucos. Morto Mário, José Bento cuidou da divulgação da carta que este deixara em sua confiança, pedindo que fosse entregue a seu irmão Carlos Moraes de Andrade. No post-scriptum desta carta, Mário agradecia a assistência de José Bento, deixando-lhe uma importância em dinheiro, que, no entanto, nunca se achou.

Ao secretário e amigo de tantos anos, Mário de Andrade dedicaria os poemas de Marco de Viração, de Remate de Males. Sobre sua convivência com o escritor afirmaria José Bento que “significou muito, me esclareceu, me abriu horizontes, me deu certo sentido de liberdade, um sentido de respeito pela pessoa humana, um sentido de respeito à individualidade de cada um…o Mário me deu esta noção de liberdade e de amor… foi um período feliz de minha vida, aquele em que acreditei nas coisas.”

Em sua extensa carreira como funcionário público, passou pelo Departamento de Cultura do Município de São Paulo, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, onde foi o braço direito de Zeferino Vaz, a quem, anos mais tarde, novamente assessoraria, nos primórdios da Universidade Estadual de Campinas.

Teve ainda destacada atuação como professor da Escola de Artes Plásticas e do Conservatório Musical Carlos Gomes, ambos em Ribeirão Preto.

Articulista de diversos jornais e revistas, deixou significativa contribuição como ensaísta, poeta, cronista e historiador. Em 2005, meses depois de sua morte, veio a lume seu mais alentado trabalho, o livro Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto: criação e impacto no ensino médico, contando a história do primeiro curso de medicina do interior de São Paulo, vinculado à Universidade de São Paulo. E há muito é aguardada a publicação de sua correspondência com Mário de Andrade, entregue aos cuidados do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Figura humana de caráter irretocável, despido das ambições mundanas, essencialmente modesto e terno, nunca deixou perder dentro de si o menino humilde que um dia fora no interior de Minas, embora tenha convivido com figuras de primeira grandeza de nossa cultura e vida pública. Até o final da vida, continuou um leitor voraz, preocupado com tudo que envolvesse o universo dos livros. Sua vasta biblioteca, formada ao longo de mais de sete décadas, hoje pertencente à Universidade Estadual Paulista, campus Araraquara, atesta o lúcido intelectual que foi e a sólida formação humanística que amealhou.

 

Sobre os autores: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo(USP), professor e jornalista.

 

 

 

 

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