De que está à procura ?

Colunistas

João Silvério Trevisan: a esperança periclitante do escritor

Romancista, contista, ensaísta, roteirista e diretor de cinema, João Silvério Trevisan tem sua premiada obra traduzida para diversas línguas. Fundador, na década de 1970, do Somos, primeiro Grupo de Liberação Homossexual do Brasil, foi também um dos fundadores e editores do jornal Lampião da Esquina, a primeira publicação voltada para a comunidade homossexual brasileira.

Autor de Devassos no Paraíso, o mais extenso estudo sobre a história da homossexualidade no Brasil, em seu mais recente trabalho, o romance autobiográfico Pai, Pai, resgata, numa narrativa intensa, dolorosa e de raro vigor, a difícil relação que teve com a figura paterna. Nascido em Ribeirão Bonito, no interior de São Paulo, ainda jovem mudou-se para a capital paulista, mas também viveu em Berkeley, Cidade do México e Munique.

Quando a descoberta do livro e da leitura?

Nasci e vivi minha infância numa cidadezinha no interior do estado de São Paulo. Como filho primogênito, tinha que auxiliar meu pai, um padeiro alcoólatra, nos serviços de venda no balcão da padaria e entrega dos pães. Num ambiente inóspito, em que meu pai frequentemente me surrava sem motivo aparente, minhas duas fontes de fantasia para sobrevivência eram os filmes, no cinema local, aos domingos e os livros disponíveis na livraria, o ano todo. O círculo virtuoso se fechava com o desejo de minha mãe, uma mulher semi-alfabetizada, de ter seus filhos superando sua condição. Daí que desde pequeno eu recebia dela livros infantis para leitura. O primeiro de que me lembro se chamava Carlito Cabeça de Vento, no qual eu não confiava tanto, por achar que sua história implicava uma acusação a mim, por não ser suficientemente bem comportado. Quando fui para um seminário, aos dez anos, minha mãe comprava à prestação, na livraria local, livros que iam de José de Alencar a Conan Doyle, que eu lia durante as férias. Ao contrário dos filmes, em que eu recebia tudo pronto pela imagem, o encanto da leitura era imaginar os cenários e os personagens, enquanto eu lia sozinho no fundo do quintal. Talvez esse contato com os livros me levou a gostar de escrever, desde o período escolar.

Como foram os anos de seminário e a importância que eles tiveram em sua formação intelectual? Eles lhe deixaram algum rastro de fé na transcendência?

Passei dez anos entre os seminários menor e maior, em diferentes cidades, de 1955 a 1964. Ambos foram fundamentais, tanto do ponto de vista intelectual, quanto da vida interior. Os primeiros anos de seminário foram opressivos, com toda a estrutura punitiva da velha igreja. De 1958 em diante, tive uma formação privilegiada, pelo viés progressista, graças às transformações pedagógicas incentivadas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II. No curso formal do ginásio (ensino fundamental II) e colegial (ensino médio), estudei ciências humanas, em que se destacavam latim e grego clássico. Talvez, por causa dos tempos iniciais muito rigorosos, em que todas as orações eram em latim, eu não tivesse muita paciência com essa língua. Estudar De Bello Gallico, de Caio Júlio Cesar, me parecia uma chateação. E tanto Virgílio quanto Horácio e Ovídio eram muito difíceis, por vezes áridos demais. Ao contrário, o grego clássico me encantava, por sua sonoridade, precisão gramatical e articulação poética, com extraordinária musicalidade proporcionada pelos versos jâmbicos. Tanto que meu trabalho de fim de curso do colegial foi sobre as metáforas da Odisséia, com citações no original. Paralelamente, eu já estava escrevendo meu primeiro romance, plagiado numa novela de rádio muito famosa no período: Jerônimo, o Herói do Sertão. Na adolescência, devo lembrar a importância do meu contato com poetas modernistas brasileiros. Cheguei a participar em concursos de declamação – no que eu era muito bom – com poemas de Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima. O interesse se estendeu ao teatro, depois que recebi de presente do meu professor de literatura um livro de peças infantis de Maria Clara Machado, de quem dirigi Pluft o Fantasminha, grande sucesso até mesmo fora do seminário. Também comecei a estudar cinema com afinco, até o ponto de trazer um especialista para dar um curso de linguagem cinematográfica no seminário menor. Em Aparecida do Norte, onde fiz o curso de filosofia no seminário maior, promovi um ciclo do cinema novo, em parceria com a Cinemateca Brasileira. Meu amor pelo cinema me levou, certa vez, a pular os portões do seminário para ver, numa sala de Aparecida, o filme Festim Diabólico (The Rope), de Alfred Hitchcock, diretor que eu admirava desde cedo, ao lado de John Ford. Quanto à minha vida interior, o seminário foi importantíssimo para me fazer conhecer, criticar e me afastar da igreja católica – cujos dogmas, em especial sobre o amor, me horrorizavam. Descobri que os dogmas estavam na base de todo credo religioso, o que me afastou da fé e me jogou nos braços de uma esperança periclitante, cuja pequena chama eu luto para manter viva, incessantemente. Aí brotou minha vocação anarquista, pois aprendi a sentir à distância o cheiro de dogmas, inclusive em partidos políticos, que transportam a fé religiosa para a verdade partidária. Boa parte desse processo eu narrei no meu recente romance autobiográfico Pai, Pai.

Da extensa ficção que vem produzindo ao longo de mais de quatro décadas, considera Ana em Veneza o ponto mais alto?

Eu não me atreveria a dizer o mesmo. Esse romance, de 1994, foi certamente o de produção mais difícil: quatro anos de pesquisas e escritura diversificada, que perpassa muitos estilos e épocas. Considero Vagas Notícias de Melinha Marchiotti, meu segundo romance, publicado em 1984 e, na verdade, o primeiro escrito, como minha obra mais experimental, que elaborei com extraordinário senso de liberdade e transgressão linguística, estilística, estrutural e temática. Infelizmente, quase ninguém o conhece, pois está fora do mercado há pelo menos duas décadas. Não que essa ausência dos catálogos editoriais seja uma exceção. Apesar da minha longa trajetória literária, eu me considero um dos mais invisíveis escritores brasileiros, pelo fato de beirar o ineditismo em muitos setores do público, especialmente entre as novas gerações. Evidência disso é que tenho apenas duas obras disponíveis nas livrarias. Sem esquecer que fui descoberto pela academia (ainda assim, até certo ponto) a partir de Ana em Veneza. Dentro dos muros acadêmicos, há muita gente que continua a me considerar um escritor pornográfico, quando não um viado que fala apenas para os viados, portanto, um escritor de segunda categoria.

Pode nos contar um pouco sobre sua experiência no cinema, ao escrever o roteiro e dirigir Orgia ou o Homem que Deu Cria, por mais de uma década proibido pela censura brasileira?

Orgia é um filme inclassificável na história do cinema brasileiro, apesar de ser frequentemente enquadrado dentro do grupo do cinema marginal que sucedeu o cinema novo. Eu o escrevi e dirigi em 1970, no período da ditadura militar, com bastante autoconfiança, pouquíssimo dinheiro e recusando qualquer forma de autocensura. Recebi o troco com a proibição de sua exibição em território nacional, por mais de uma década, sob pretexto de ser “inconveniente em toda sua totalidade” (sic). Segundo os censores, eu tinha feito um filme obsceno e me mandaram cortar inúmeras cenas. Eu nunca achei nada de obsceno ali. Não cortei. Minha carreira no cinema foi por água abaixo. Acabei indo embora do Brasil.

Quais os maiores desafios que enfrentou ao escrever Devassos no Paraíso, certamente o mais fecundo estudo sobre a história da homossexualidade no Brasil?

A invisibilidade da presença LGBT num país como o Brasil é o maior problema para pesquisar essa área. Há que buscar rastros, levantar tapetes e realizar um trabalho de formiguinha, farejando aqui e ali. Levei anos a fio até publicar a primeira e segunda edições, em 1986, mais outro tanto para a terceira, em 2000. E neste ano me esfalfei para atualizar e ampliar o texto, visando à quarta edição, recém-publicada. Precisei pesquisar e escrever em torno de 200 novas páginas em menos de quatro meses. Na história do livro, encontrei pela frente ressalvas de toda ordem, em especial no setor acadêmico. Mesmo que eu tenha feito pesquisas rigorosas e trazido elementos inéditos para compor a história de um Brasil totalmente desconhecido, a academia rechaçava a maneira sem sisudez da minha escrita e, por vezes, ao fazer a narrativa em primeira pessoa, quando não se podia esquecer que eu era protagonista, como fundador do Somos, primeiro grupo de ativismo pelos direitos LGBT no Brasil. O rechaço formal não impediu que meu livro tenha sido explorado até o plágio, dentro da academia. Felizmente, também encontrei pelo caminho muita gente generosa que me ajudou em várias áreas, oferecendo informações, linhas de pesquisa e obras de consulta. O resultado é que hoje há uma nova geração sedenta pelo livro. No primeiro mês de lançamento da quarta edição, Devassos já estava entre os 500 livros mais vendidos no Brasil – e isso considerando que se trata de um catatau de mais de 700 páginas.

Ter sido um dos fundadores e editores, em plena ditadura militar, do jornal Lampião da Esquina, voltado à comunidade homossexual brasileira, significou, antes de tudo, um ato de coragem. Que lembranças mais marcantes ficaram daqueles tempos?

Os atos, que hoje soam corajosos, quando vistos em perspectiva, são quase sempre resultado de uma necessidade nada heróica de sobrevivência sem alternativas. Foi duro criar, fazer e manter o jornal, pois tivemos que inventar, no período da ditadura militar, até mesmo uma rede de distribuição e ir na contramão do enrustimento generalizado da comunidade LGBT, que temia ir às bancas de jornais comprar o Lampião. Mas, para o corpo dos editores, tratava-se de enfrentar uma situação insustentável: nosso desejo estava sendo asfixiado e precisávamos de mobilização. A lembrança mais marcante que tenho foi de ser fotografado criminalmente na polícia federal, por causa de um inquérito que nos acusava de atentado à moral e aos bons costumes. No meu pescoço foi colocada uma placa onde se lia o número 0240 – e o número 24 não era casual, com certeza.

Pai, Pai, seu livro mais recente, inaugura o que você chama de Trilogia da Dor. O que o levou a materializá-la?

A dor é um elemento incontornável na experiência humana. De estar tão presente, é também negada com veemência, pois ninguém gosta de sofrer. Essa recusa torna a vida irreal. Não podemos recusar aquela parte de nós que nos desagrada, porque dói. Considero um aprendizado inescapável abrir os braços para a dor, olhar em seus olhos e admitir sua existência em nós. O desnudamento radical que fiz em Pai, Pai buscou chegar até a revelação da minha dor, para assim se compreender minha trajetória interior como resultado dela. Se nesse livro falei do amor paterno, tão fundamental na experiência humana, as duas outras obras da Trilogia pretendem abordar o amor fraterno e o amor sexual. Fraternidade e sexualidade são dois outros elementos que marcam a condição humana. Sem a figura paterna, não nos colocamos de pé enquanto adultos. Mas, sem nossos amigos e nossos amores também não existimos, enquanto tais.

Trazer à tona experiências dolorosas no relacionamento com seu pai foi uma catarse necessária, na maturidade de sua existência?

Dizer que foi uma catarse seria simplificar a questão. A persistente ausência do meu pai me levou a cavoucar um chão que ele não me deu. A parca esperança que mantenho resultou da esperança que ele me sequestrou desde a infância. E minha imensa necessidade de amar é indiscutivelmente resultado do amor que ele me negou. Descobri, por causa dele, a necessidade da misericórdia. Fui obrigado a buscar os motivos de ter sido tão desamado e isso me obrigou a compreender o desamor que lançou meu pai no desespero e no alcoolismo. Os embates interiores, desde quando comecei a elaborar meu parricídio, com certeza me levaram a bater a cabeça pela vida afora, até encontrar o senso do perdão em relação ao meu pai. Então, descobri que não existe perdão ao outro sem o perdão a si mesmo. E mais: o gesto de perdoar exige um tão alto grau de reexame e reelaboração dos sentimentos que o perdão se torna o maior dos gestos que poderíamos chamar de genuinamente humanos. Tudo isso eu ganhei graças ao desamor do meu pai.

Há mais de 30 anos à frente da coordenação de oficinas de criação literária, que experiências considera mais significativas?

Adoro esse meu trabalho, que é cansativo, mas gratificante quando consigo passar adiante minhas preocupações literárias. Já formatei vários escritores/as que hoje estão em atividade no Brasil. Também devo à coordenação de oficinas literárias uma consciência ampliada sobre minha escrita. E, não menos verdade, tem sido através desse ofício que venho garantindo meu ganha pão.

Ganhador de importantes prêmios literários, que papel atribui a eles?

As premiações implicam um evidente reconhecimento. Mas há também frustração, quando descobrimos que muitos prêmios podem ocorrer como resultado extra-literário, o que os torna meros prêmios de consolação. Deve ser terrível receber um prêmio literário graças, por exemplo, ao politicamente correto e depois cair no esquecimento, quando esses motivos saem da moda. Isso vale para qualquer outro ditame político que pouco tem a ver com a literatura. Deixar de dar o prêmio Nobel a Jorge Luis Borges, por exemplo, é um típico caso de desconsideração por motivos políticos tolos, em se tratando de um dos maiores escritores do século 20. Atualmente, meu olhar para a loteria dos prêmios literários tem a ver muito mais com minha conta bancária. Na idade em que me encontro, estou cansado de batalhar pela sobrevivência. Se quiserem me reconhecer, comprem e leiam meus livros – para me garantir os parcos direitos autorais. Dos prêmios, quero dinheiro para passar o final da minha vida mais tranquilo, podendo, pelo menos, mergulhar em parte das obras que não consegui ler nestes anos de luta insana para sobreviver.

Como analisa a ascensão da extrema direita no país? Quais caminhos para resistência, sobretudo para que não cesse a luta pelos direitos das minorias sexuais?

Francamente, essa ascensão é um movimento reativo inevitável, especialmente após a vitória de Trump, nos Estados Unidos. Nós, brasileiros, adoramos macaquear tudo o que os americanos consideram bom, inclusive quando os tomamos como referência para odiar. Não por acaso, Trump é o mais claro objetivo que Jair Bolsonaro tem em seu projeto de poder, sem nunca ter apresentado um programa de governo, o que faz prever uma gestão errática em busca de si mesma – tão logo ele descubra que governar um país é diferente de fazer continência num quartel do exército. E, claro, exige muito mais perspicácia, inteligência e generosidade do que apenas usar como emblema político uma arma apontada com os dedos, aliás, um claro signo freudiano da sua incapacidade de compreender a amplidão da sexualidade. O horror que sua turma tem da pauta LGBT, aí enfatizando as questões de identidade de gênero, é emblemático de como a mediocridade sexual pode se desdobrar em mediocridade politica e ideológica. Brandir a tal ideologia de gênero como inimigo mortal é a forma mais fácil – para não dizer simplista – de unir as mais variadas tendências conservadoras. E aí o governo bolsonarista está novamente imitando o trumpismo. Quanto à resistência a eles, não vejo nada de novo: basta continuar a ser aquilo que somos e fazemos convictamente. Mas, se nos “anos dourados” nos reduzimos à conversa fiada das redes sociais e nos limitamos a bajular políticos progressistas, agora vamos ter que recolocar em movimento a enferrujada capacidade de resistir. Da minha parte, os governos de esquerda no Brasil nunca me convenceram a lhes delegar minha voz. Conheço um número extraordinário de pessoas que, sob os governos petistas, desistiram de resistir por acreditar na balela demagógica de que estavam representadas no poder. Eu não. Quando os supostos progressistas estavam no poder, eu continuei exercitando minha capacidade de resistir. E vou continuar com a direita desavergonhada. Agora há pelo menos a vantagem de sabermos com clareza quem são nossos adversários.

Novos projetos?

O projeto maior é resistir à mediocridade, seja ela cinzenta ou dourada, através da minha capacidade de criar. Tenho dezenas de projetos literários ou não, alguns inconclusos, outros já prontos. Vários recentes, muitos guardados nas gavetas. De imediato, talvez eu termine a segunda parte da Trilogia da Dor, já bem adiantada, um livro que se chama Meu irmão, eu mesmo, sobre a morte do meu irmão Cláudio, um dos meus maiores amigos e amores. Também terminei, há três anos, um novo romance, até agora inédito. Tenho ainda um novo livro de contos pronto. Sem falar dos vários roteiros de filme que escrevi há muito tempo e foram recusados, talvez por seu viés transgressivo. Um deles, inclusive, enviei para o diretor português João Pedro Rodrigues, no ano passado, depois que vi seu O Ornitólogo, em São Paulo, e adorei, mesmo porque sempre admirei sua obra. Fui apresentado a ele e trocamos mensagens por e-mail. Enviei-lhe meu roteiro O onanista, história de um homem que descobre a sacralidade na auto felação e se torna um santo desvairado. Bem, o João Pedro respondeu que estava muito ocupado naquele momento, e só.

Sobre os autores da entrevista:Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP, professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA