Imposto de selo sobre valores mobiliários e participações em fundos
A Diretiva de Reunião de Capitais opõe-se à incidência de Imposto do Selo sobre as comissões cobradas pelas instituições financeiras como contrapartida pelos serviços prestados de colocação em mercado de valores mobiliários sob a forma de títulos negociáveis e demais operações conexas, bem como de comercialização de subscrições de unidades de participação emitidas de fundos de investimento mobiliário abertos geridos por sociedades gestoras de fundos de investimento.
ENQUADRAMENTO FACTUAL E PROBLEMÁTICA
Recentemente, o Tribunal Arbitral, constituído no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), pronunciou-se, em decisão arbitral datada de 5 de março de 2024, sobre a (i)legalidade da sujeição a Imposto do Selo das comissões cobradas por instituições de financeiras pela prestação de serviços de colocação em mercado de valores mobiliários sob a forma de títulos negociáveis, como obrigações e papel comercial, bem como demais operações conexas.
A problemática emergiu no contexto da participação, por parte de uma sociedade (a “Requerente” neste processo), em operações de emissão de valores mobiliários sob a forma de títulos negociáveis, tendo solicitado a intermediação de diversas instituições financeiras para o efeito. No âmbito dessas operações, as referidas instituições prestaram à Requerente diversos serviços de colocação em mercado e demais operações conexas, incluindo, entre outros, a obrigação de envidar os melhores esforços para identificar e contactar potenciais investidores, com vista à distribuição dos valores mobiliários emitidos pela Requerente, bem como receber ordens de subscrição e de aquisição por parte desta.
Pela prestação destes serviços, as instituições financeiras cobraram à Requerente comissões, acrescidas do Imposto do Selo correspondente calculado à taxa de 4%. Com efeito, as quantias despendidas pela Requerente, a título de comissões pelos serviços prestados, compreenderam, também, os montantes suportados a título de Imposto do Selo, tendo este encargo tributário, porque repercutido, sido integralmente suportado pela Requerente.
Sucede que, por entender ser de aplicar, neste caso, a proibição de tributação indireta sobre as operações de reuniões de capitais que decorre da Diretiva 2008/7/CE, do Conselho de 12 de fevereiro de 2008 (“Diretiva de Reunião de Capitais”), a qual postula uma interpretação restritiva das disposições da legislação portuguesa que impõem a sujeição a imposto das comissões em causa, e, portanto, não se podendo conformar com os atos tributários de Imposto do Selo em causa cujo encargo tributário foi repercutido na sua esfera, a Requerente apresentou um pedido de pronúncia arbitral, nos termos do qual pugnou, no essencial, pela anulação das respetivas (auto)liquidações de Imposto do Selo e correspondente reembolso dos montantes por si indevidamente pagos.
OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
Reiterando o sentido decisório já proferido em decisões arbitrais anteriores, nomeadamente na decisão arbitral, datada de 19 de maio de 2022, proferida no âmbito do processo n.º 208/2021-T, decidiu o Tribunal Arbitral no sentido de que à luz da pronúncia do TJUE declarativa da incompatibilidade de liquidação e cobrança de impostos indiretos, maxime no caso, do imposto do selo, à taxa de 4% sobre comissões de colocação em mercado de obrigações e papel comercial ou outros títulos de dívida, cobradas por entidades bancárias na qualidade de intermediários financeiros, revelam-se manifestamente ilegais as liquidações objeto dos autos. O princípio do primado do direito da União Europeia e o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República, não deixam dúvidas quanto ao que deva ser o sentido da decisão: a total procedência do pedido de anulação das liquidações.
Efetivamente, só poderia ter sido este o sentido da decisão tomada, porquanto é o que mais se coaduna com o regime legalmente aplicável. Senão, vejamos:
Pese embora a legislação fiscal portuguesa estabeleça que as comissões cobradas por instituições financeiras, como contrapartida pelos serviços de colocação em mercado de valores mobiliários sob a forma de títulos negociáveis, sejam sujeitas a Imposto do Selo, é necessário considerar as disposições de Direito da União Europeia nesta matéria, especialmente no contexto deste tipo de operações de reunião de capitais.
Concretamente, a Diretiva de Reunião de Capitais determina, expressa e claramente, que os Estados-membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto (como o Imposto do Selo) a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de títulos negociáveis, como obrigações e papel comercial, bem como demais operações conexas.
Com efeito, e uma vez que vigora o princípio do primado do Direito da União Europeia no ordenamento jurídico português, impõe-se reconhecer preeminência não só ao direito dos Tratados fundamentais da União Europeia (o designado direito comunitário originário), mas também a todo o Direito comunitário derivado, como o que resulta dos Regulamentos e das Diretivas comunitárias. Assim, qualquer violação do Direito da União Europeia implica a desaplicação de todas as normas de Direito português conflituantes. Significa isto que, quando uma determinada ação ou matéria estiver compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, como sucede com as operações de reunião de capitais em questão, o Direito da União deve prevalecer sobre o regime interno português, por ser uma fonte de direito hierarquicamente superior.
Por esta razão, impõe-se empreender a interpretação já efetuada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) a propósito desta mesma questão, no âmbito do processo n.º C-335/22, o qual concluiu no sentido de que a Diretiva de Reunião de Capitais se opõe a uma legislação nacional que prevê a cobrança de um imposto do selo a título dos montantes pagos por uma sociedade de capitais a uma entidade bancária à qual confiou a colocação em mercado de títulos negociáveis, como obrigações e papel comercial de novas emissões, independentemente da questão de saber se as sociedades emitentes dos títulos em questão estão obrigadas por lei a recorrer aos serviços de um terceiro ou se optaram por recorrer aos mesmos de forma voluntária.
Tendo presente o que antecede, e transpondo para o caso aquilo que resulta do Direito da União em matéria de tributação de operações de reunião de capitais, há que concluir, como concluiu o Tribunal Arbitral, pela incompatibilidade da tributação indireta sobre as comissões em questão. Assim, as disposições de direito nacional que determinam a tributação das comissões cobradas por instituições financeiras como contrapartida pelos serviços de colocação em mercado de valores mobiliários sob a forma de títulos negociáveis e demais operações conexas deverão – não obstante tais disposições se encontrarem, ainda, em vigor no nosso ordenamento jurídico – desaplicar-se, o que conduz, inevitavelmente, à anulação dos respetivos atos de (auto)liquidação de Imposto do Selo.
O CASO PARTICULAR DOS SERVIÇOS DE COMERCIALIZAÇÃO DE SUBSCRIÇÕES DE UNIDADES DE PARTICIPAÇÃO EM FUNDOS DE INVESTIMENTO MOBILIÁRIO
O mesmo discurso fundamentador acima enunciado foi, com as necessárias adaptações, considerado pelo Tribunal Arbitral, na decisão proferida no âmbito do processo n.º 722/2023-T, agora a propósito da questão de saber se as comissões cobradas por instituições financeiras como contrapartida pelos serviços de comercialização de subscrições de unidades de participação em fundos de investimento mobiliário abertos se encontram sujeitas a Imposto do Selo ou, ao invés, se estão abrangidas pela proibição constante da Diretiva de Reunião de Capitais.
A questão colocou-se em termos muito semelhantes aos do processo arbitral acima descrito, mas, agora, num contexto em que uma dada sociedade gestora de fundos de investimento se dedica à gestão de fundos de investimento mobiliário comercializados aos balcões de diversas instituições financeiras. Pelos serviços de comercialização prestados as referidas instituições cobram comissões de comercialização, também estas acrescidas do Imposto do Selo correspondente calculado à taxa de 4%, cujo encargo tributário é, também neste caso, repercutido na esfera da sociedade gestora de fundos de investimento.
De notar que, neste caso específico, está em causa a tributação em Imposto do Selo de comissões adicionais de comercialização, as quais podem ser cobradas quando atingido um determinado limiar de comercialização por parte das instituições financeiras. No entanto, para efeitos da determinação da sua sujeição, ou não, a Imposto do Selo, impõe-se aplicar-lhes o mesmo critério utilizado no contexto de comissões ditas normais.
Com efeito, a propósito de questão idêntica, o TJUE também já se pronunciou, no âmbito do processo n.º C-656/21, tendo concluído que, entre outros fundamentos, encontrando-se os serviços de comercialização de participações em fundos comuns de investimento estreitamente ligados às operações de emissão e colocação em circulação de unidades de participação, então, devem tais serviços ser considerados como parte integrante de uma operação global à luz da reunião de capitais. Concomitantemente, o facto de uma instituição financeira, no âmbito da prestação de serviços de comercialização de subscrições de unidades de participação emitidas de fundos de investimento mobiliário abertos, dar a conhecer aos seus clientes a existência destes instrumentos de investimento e, assim, promover a sua subscrição consubstancia uma diligência comercial necessária que deve ser considerada uma operação acessória, integrada na operação de emissão e colocação em circulação de participações nos referidos fundos.
Por este motivo, e, novamente, considerando a prevalência do Direito da União Europeia sobre as disposições de direito nacional conflituantes à luz do já referido princípio do primado, concluiu o Tribunal Arbitral que a Diretiva de Reunião de Capitais também se opõe à incidência de Imposto do Selo sobre a remuneração paga por uma sociedade gestora de fundos de investimento a uma instituição de crédito, pela prestação de serviços de comercialização de subscrições de unidades de participação recentemente emitidas de fundos de investimento mobiliário abertos geridos pela primeira.
Tendo presente o que antecede, estamos em crer que a expectativa de as sociedades que contestem a cobrança deste imposto (quer no contexto de serviços de colocação em mercado, quer no de comercialização) poderem vir a beneficiar desta linha jurisprudencial é relativamente elevada, podendo, por conseguinte, vir a recuperar os montantes de Imposto do Selo indevidamente pagos, o que, na prática se poderá traduzir na recuperação de valores significativos.
***
Rogério Fernandes Ferreira
Vânia Codeço
José Pedro Barros
Álvaro Pinto Marques
Mariana Baptista de Freitas
Inês Reigoto
Leonor Gargaté Oliveira
Bárbara Malheiro Ferreira
Alice Ferraz de Andrade
Raquel Tomé Castelo