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Hique Gomez: o humor longevo de Tangos e Tragédias

Músico, ator e compositor, o gaúcho Hique Gomez tornou-se figura conhecida não só em seu estado natal, mas em todo Brasil e nos vários países aos quais levou um dos espetáculos mais populares e longevos de nossa história: Tangos e Tragédias, criado por ele e por Nico Nicolaiewsky, falecido em 2014.

No cinema, foi protagonista e autor da trilha sonora do premiado A Festa de Margarette, de Renato Falcão.

Como ocorreu o encontro de Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky?

Nos conhecemos no meio artístico em Porto Alegre. Eu tinha uma outra dupla, com Sá Brito, ele também tocava acordéon, entre outros instrumentos. E o Nico tinha uma banda muito conhecida na cidade, chamada Saracura.

E a ideia de criar o Tangos e Tragédias? 

Nós nos reunimos para estudar música juntos e imediatamente pintou uma sintonia artística explosiva.

Pode nos contar um pouco sobre sua formação musical e teatral?

Minha formação é de música popular brasileira. Toquei bandolim muitos anos, na noite. Sou chorão, mas multi-instrumentista. Depois, estudei violino, instrumento que não dá para parar de estudar. Estudei orquestração. Escrevo arranjos e faço concertos como solista. Ano passado, fundei o Instituto de Áudio de Alta Fidelidade Marcelo Sfoggia e coordeno as gravações semanais da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA), o que considero uma outra etapa do meu desenvolvimento musical. Em teatro, fiz trabalhos com Dilmar Messias, a quem considero meu mestre de teatro, com quem aprendi alguns fundamentos. Mas, de forma geral, ainda me identifico muito com aquele dístico do Mário Quintana: “Autodidata: ignorante por conta própria.”

A tragédia, essencialmente mitológica, culto a Dionísio, segundo Aristóteles é também uma espécie de catarse. Por que o título Tangos e Tragédias numa dupla que se propôs a fazer humor?

Antes de ser uma forma de expressão artística como você comenta, a tragédia é parte da condição humana. Todos se identificam com isso. Estamos aqui, numa condição hiperlimitada, passando por situações difíceis, ricos e pobres, sem capacidade de decifrar o significado exato disso tudo. Quando um de nós consegue decifrar uma parcela do sentido da vida, nos tornamos uma personalidade de grande destaque. Um iluminado. No inicio, tínhamos quatro tangos do Vicente Celestino, muito trágicos. Ele sim tinha um DNA italiano e o timbre de cantor de ópera. Trazia na bagagem aquele tipo de tragédia grega. “Coração Materno”, “O Ébrio” “Porta Aberta”. Sentíamos que precisávamos de vozes adequadas para cantar estas canções e que elas não seriam as nossas. Achando as vozes, instantaneamente surgiram os personagens Kraunus e Pletskaya. Juntamos outras canções que não eram tangos, mas que eram tragédias e criamos o Teatro Hiperbólico. Mas o que é o Teatro Hiperbólico? Eu mesmo respondo: é onde se encontram a verdade e a mentira, o instante e a eternidade. É onde o tudo e o nada são pedaços de um pedaço de outro pedaço, de um pedacinho de um pedaço. Por que o humor? Ora, por que não? Não se escolhe ser humorista. Ou você é ou não é. Catarse é parte de um ritual que penso termos feito todo esse tempo. Temos visto algumas tentativas atuais de pessoas ofendendo outras publicamente e sendo agressivas para parecer engraçadas. Isto não é humor. É outra coisa que ainda não tem nome adequado.

Havia alguma preocupação ideológica no processo criativo do Tangos e Tragédias?

Não havia preocupação ideológica. Mas existia um universo estético, onde a anarquia podia conviver com o rigor artístico. E onde pudéssemos nos expressar em nossa plenitude como artistas e administrar as nossas limitações de forma adequada, para evoluirmos como seres humanos, ao mesmo tempo em que nos permitíamos aplicar nossos pontos de vista sobre a vida, o que muitas vezes parecia conflitante, mas não o suficiente para impedir o andamento de nosso trabalho, que durou mais de três décadas.

Quais suas principais referências artísticas?

A principal é a obra de Charles Chaplin, como criador, ator a compositor. Rigor, lirismo, comédia, reflexão e, sobretudo, espontaneidade. Vou citar também o Chico Anísio, pois não há ninguém como ele no mundo todo.Vejo isso ainda na obra do Mario Quintana e do Hermeto Pascoal.

O teatro é mero entretenimento ou tem o dever de levar o público à reflexão?

No nosso caso, para o porteiro do prédio da minha mãe, que leva sua esposa para se divertir, o nosso trabalho simboliza um momento de puro divertimento, onde ele relaxa mesmo, esquece os problemas e mergulha num momento lúdico, numa brincadeira gostosa e só isso. Já para o cara que pode ter acesso a um pouco de cultura, o trabalho simboliza algo que ele identifica como seu, porque consegue ler elementos nos personagens que são da sua cultura, no caso do sul do Brasil, que é fortemente marcado pela cultura dos imigrantes, como os personagens sbornianos. No caso do público de fora, ele também identifica como uma cultura definida de um lugar, porque as formas estéticas que utilizamos são bem claras. Além de tudo, o publico gosta de rir das nossas caras. Mas aí tem um outro tipo de pessoa que também nos frequenta muito, que são os eruditos. Para este tipo de pessoa, o espetáculo é deglutido nos seus mínimos detalhes. E eles nos ajudaram muito a trazer referências que nem nós mesmos tínhamos tomado consciência. O professor Joachim Koellreuter, por exemplo, foi um deles. A esposa dele tocou nosso cd no ritual de cremação dele. Tu vês, o cara é alemão, estudou com Paul Hindemith, que é uma das referências da música contemporânea universal e no inicio do século passado veio para o Brasil, trazendo toda uma carga da música contemporânea e da história da arte. Fundou escolas em várias partes do mundo, foi professor de Tom Jobim e da grande maioria dos compositores de musica erudita de sua época. Era meio uma obrigatoriedade passar pelo Koelrreuter. Porque ele era um mestre, um filósofo da musica e da arte. Pois o professor ia ver o espetáculo, quando estávamos em São Paulo ou no Rio. E ele fez uma leitura que nos acrescenta muito como seres humanos. Ressaltou detalhes que só um cara de grande sensibilidade pode perceber. Não que o porteiro não perceba. Ele percebe, mas não consegue processar, pois a cultura dele é equivalente a um computador antigo. Ele não tem dados culturais para identificar os detalhes que o professor aponta, pois tem uma cultura equivalente a um computador de ultima geração, que faz auto-upgrade de seis em seis meses. Para ele, o espetáculo simboliza uma obra de arte de grande refinamento. Como ele mesmo dizia “uma lição de vida”. Eu já não tenho toda essa capacidade do professor. Para mim, Tangos simboliza só um ganha pão, uma maneira de me lapidar como artista, além de uma maneira divertida de me comunicar com o público.

Durante toda a trajetória de Tangos e Tragédias, que momento você destaca como o mais inusitado? O que mais o surpreendeu nas centenas de apresentações?

São tantas emoções! (rs). Estivemos na Espanha e tocamos num teatro muito antigo, numa cidade de 3000 anos, Cádiz, Quando saímos para rua, tocando com o público, os espanhóis batiam palmas em estilo flamenco. Tinha uma lua cheia e estávamos numa cidade medieval, na frente de um teatro de estilo mourisco, com janelas árabes, El Gran Falla. Quando o público gritou “Bah!”, na canção “Aquarela da Sbórnia”, as pombas se assustaram e saíram em revoada (rs).

As raízes judaicas de Nico acrescentam um toque da leveza humor judaico ao trabalho da dupla?

Sim, absolutamente. Não só acrescentam um toque de leveza, mas, muitas vezes, remetem aos musicais judaicos. O estilo de humor sarcástico e muitas vezes cáustico está nos fundamentos de nosso trabalho. Também o timbre cigano do violino, aliado ao ritmo do acordeon.

Como foi sua passagem pelo cinema, em A Festa de Margarette.

Maravilhosa experiência de cinema. Fiz o protagonista e a trilha sonora. Filme mudo, preto e branco. Escrito e dirigido por Renato Falcão, criador dos filmes Era do Gelo e Rio, da Blue Sky. Estive em Nova York duas vezes, por causa do filme. E também em Paris. Ganhamos o prêmio da Federação Internacional dos Críticos de Cinema, em Motovun,  na Croácia. Estivemos num projeto fantástico, junto ao MoMA (Museu de Arte de Nova York). O filme percorreu 14 estados, em instituições importantes, como o Walt Disney Music Hall e é parte do acervo do MoMA. Você pode encontrá-lo na Amazon.com como Margarette’s Feast. Infelizmente, não foi lançado no Brasil.

Gostaríamos que falasse um pouco sobre a defesa da ética e da dignidade dos animais, causa que abraçou anos atrás.

Eu abracei a causa acompanhando minha mulher, que é muito ligada a isso, mas tantos anos envolvido já me misturo à causa também. Nós, humanos, pensamos que a natureza está longe da gente, que a natureza está lá na Amazônia. É uma grande ilusão. A natureza somos nós! Nós somos a natureza. O DNA humano difere em apenas três por cento do DNA de um símio, por exemplo.Eu penso que cuidar dos animais é cuidar da natureza. A Prefeitura de Porto Alegre está dando um grande exemplo de civilidade criando a SEDA, Secretaria Especial dos Animais, com grandes resultados. Eu fazia parte de um grupo de maridos das mulheres que cuidam dos animais, mas às vezes cuidavam demais. Aí fiz um hino para o grupo, dizendo “nós também somos animais!”(rs).

Que resumo faz de tantos anos de trabalho com Nico Nicolaiewsky? Houve percalços? Pensou alguma vez em parar com a dupla?

É claro que houve percalços e é possível que ainda surjam outros. Todos eles foram superados, alguns com mais, outros com menos dificuldades. Nosso encontro foi realmente explosivo em termos de criatividade. Embora tivéssemos muitas diferenças, nós soubemos usar isso a nosso favor. As nossas diferenças nos enriqueceram. Nico era fantástico, um grande profissional. Tinha um talento incrível e um tino para negócios muito apurado. Por mais diferentes que pareçamos ser, ele foi um cara que me complementou artisticamente. Só com ele eu poderia chegar aonde cheguei. Soubemos manter respeito mútuo pelo estilo pessoal de cada um, manter um espaço saudável, sabendo que o que nos ligava era o trabalho. 

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.


 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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