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Heloísa Buarque de Hollanda: o longo caminho da academia para as periferias

Paulista de Ribeirão Preto, ainda pequena Heloísa Buarque de Hollanda transferiu-se para o Rio de Janeiro com a família. Lá cursou a graduação em Letras, na Pontifícia Universidade Católica (PUCRJ) e o mestrado e doutorado em Teoria da Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na Columbia University, em Nova York, fez pós-doutorado na mesma área. Em 2009, após mais de quatro décadas de intensas atividades na UFRJ, aposentou-se na condição de livre-docente. De forma paralela à docência e à pesquisa, atuou como jornalista, com passagem pelo Jornal do Brasil; radialista, na Rádio MEC; apresentadora de televisão, na TVE do Rio de Janeiro; diretora do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e editora, dirigindo a Aeroplano, voltada para projetos editoriais alternativos. Foi a organizadora da importante antologia 26 Poetas Hoje, em 1976, que significou verdadeiro marco na história recente da literatura brasileira. Nesta entrevista ,além de relembrar os momentos mais marcantes de sua trajetória, nos conta sobre sua paixão mais recente: a Universidade das Quebradas.

Fato que muitos desconhecem é que você nasceu em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Poderia nos contar como isso aconteceu, assim como sobre seus pais e a influência que tiveram em sua formação?

Nasci em ribeirão Preto. Meu pai era paulista, médico, de família baiana, e minha mãe mineira, mas que morava com a família, fazendeiros de café, na região. Logo meu pai, que além de médico, era violinista e professor, quis sair da província e veio para o Rio com a família. Eu tinha quatro anos, mas me sinto carioca. Entretanto, como minha família é de São Paulo, reconheço um lado bem paulista na minha formação. Além de ser fã de São Paulo, para onde escapo sempre que posso.

A escolha pelo curso de Letras, aos 17 anos, se deveu a que circunstâncias, assim como a opção pelo magistério, ainda recém-formada, no início dos anos 1960?

Nessa idade, é muito cedo para se fazer planos de vida. Fui fazer letras , no caso Letras Clássicas, porque meu pai, que era da universidade, fantasiou uma carreira acadêmica para mim. Abracei o magistério, porque quem estuda grego não tem outra opção. Mas acabei gostando muito de dar aulas, o que fiz sem interrupção por 50 anos. Tenho que levar em conta também que, quando comecei a dar aulas, a universidade era um grande fórum político e cultural. Melhor lugar de trabalho era, na época, inimaginável para mim. Hoje vejo que minhas aptidões são mais visuais. Eu gostaria de ter feito arquitetura ou design.

Em que momento surgiu a necessidade do diálogo entre as linguagens da literatura e do cinema e a chamada literatura marginal?

Desde sempre. Eu nunca fui uma acadêmica stricto sensu. Me sinto mais como uma intelectual pública que procura sempre o caminho da intervenção cultural ou política, seja com atividades em jornal, em palestras, em cinema, televisão, rádio ou na direção de museus. Sempre atuei em todas essas posições estratégicas ao longo de minha vida profissional.

Como define a literatura marginal e o que ela representa diante dos cânones literários?

Na época, anos 70, a literatura marginal foi uma reação contracultural sintonizada com os movimentos internacionais, só que com cenário diferenciado. Estávamos em plena ditadura militar e sob a pressão da censura. Nesse quadro, a literatura marginal teve um papel de válvula de escape da chamada geração AI5. Ela foi ferozmente anticanônica. Mas não há nada que o tempo não resolva. Hoje vejo minha antologia de poesia marginal indicada para os vestibulares de letras e os poetas da época entraram definitivamente para a história oficial da literatura. O que não os desmerece nem um pouco. O tempo e a história é que voam.

Posteriormente a seu trabalho com a literatura marginal, seu foco voltou-se para as questões de raça e gênero em nossa literatura. Que resultados trouxeram as pesquisas por você coordenadas nesta área?

Eu tive um centro de pesquisas na escola de Comunicação da UFRJ, chamado Centro Interdisciplinar de Estudos Culturais, que era um campo de saber emergente que oferecia um bom leque instrumental teórico para o trabalho com as chamadas minorias. Nesse Centro a produção foi intensa. Tivemos grandes seminários internacionais, produzimos vários catálogos de registros da participação da mulher na cultura brasileira, coordenei um grande projeto apoiado pela Fundação Ford sobre a questão racial e suas representações, a partir das comemorações, em âmbito nacional, dos 100 anos da Abolição. Escrevi e publiquei bastante sobre o assunto. O registro dessas pesquisas está no acervo do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, que coordeno na UFRJ, todo disponível online: www.pacc.ufrj.br

Outra linha de pesquisa por você conduzida na UFRJ foi a das periferias literárias. Como ela surgiu e como acabou por desembocar em seu projeto mais recente, a Universidade das Quebradas?

Ela surgiu da minha atenção às tendências e microtendências culturais que sempre orientaram minha vida profissional. Comecei a perceber a força e a criatividade do hip hop e das demais manifestações jovens de periferia e me embrenhei no campo e no assunto. Tenho estudado muito, tanto do ponto de vista histórico da formação e desenvolvimento cultural das favelas, desde o século XIX, como do ponto de vista dos efeitos da globalização, das redes sociais, das novas mídias digitais e da internet para as culturas digamos excluídas. Considero a cultura da periferia hoje como a grande novidade e força cultural do Brasil neste século XXI. Daí para criar a Universidade das Quebradas, na UFRJ, foi um pulo.

Quais as buscas da Universidade das Quebradas e que boas experiências elas têm lhe trazido?

A Universidade das Quebradas é um programa de extensão universitária que busca a troca de conhecimentos e culturas e se baseia na eficácia de uma ecologia dos saberes para a compreensão do mundo e da cultura contemporâneas. Assim, procuramos produzir novas formas de conhecimento, rompendo a unicidade e hegemonia do pensamento branco acadêmico.

Pode nos falar sobre os momentos mais marcantes de suas atividades como radialista, quando apresentou o programa Café com Música, da rádio MEC, bem como de executiva, à frente do Museu da Imagem e do Som do RJ, nos anos 1980?

Todas essas atividades foram de aprendizado e repercutem até hoje em mim. O radio e a tv (onde tive, nos anos 80, o programa Culturama, na TVE) me deram a noção da racionalização da produção, da busca de comunicabilidade, do alcance de um público mais diversificado. O MIS me deu a experiência complicada da junção do sonho de mudanças e do confronto com a administração pública. Confesso que me tornei bem mais tolerante em meus julgamentos como critica a partir dali.

Em que aspectos a editora Aeroplano, que você fundou e dirige, difere dos modelos editoriais seguidos por nosso mercado livreiro?

A Aeroplano é um projeto editorial e não uma editora à la lêttre. Ou seja, criamos um projeto e procuramos financiamento. Não trabalhamos com balcão nem em moldes comerciais de investimento e retorno. Meu trabalho na Aeroplano é praticamente o mesmo da universidade ou nas demais atividades a que me dedico.

Como resumir suas quase seis décadas de dedicação à literatura e às artes e que projetos futuros, além da Universidade das Quebradas, tem em mente?

Resumiria dizendo que, apesar de aparentar o contrário, faço a mesma coisa há mais de 50 anos. Quero entender onde estou e se possível me empenhar para melhorar o presente. Não posso falar de projetos futuros, porque ainda estou muito apaixonada pelas Quebradas e amor novo não admite outros flertes.

De onde a ideia de escrever o livro Explosão feminista?

Sou uma feminista das antigas e estava sentindo, com tristeza, o declínio da agenda e do ativismo de mulheres neste início do século XXI. Mas, por volta de 2015, percebi uma explosão de feminismos, agora no plural, com estratégias próprias, novas linguagens políticas, novos lugares de fala que se abriam em feminismos negro, indígena, asiático, evangélico, transgênero, lésbico e tantos outros. Comecei a pesquisar essa nova onda, a quarta para ser mais precisa, e a Cia das Letras me convidou para fazer este livro. Foram dois anos de convivência, de pesquisa, de surpresas e cumplicidades geracionais. O resultado foi este livro que me deu muito prazer e muito me ensinou.

Algum antídoto para resistirmos aos retrocessos políticos e sociais que assistimos? A que atribui a ascensão do conservadorismo canhestro que ora enfrentamos?

O tsunami conservador é tão mais assustador quando percebemos que não se resume a governos e lideranças de direita, mas a uma enorme faixa da população, igualmente conservadora e radical, que estava silenciosa, submersa, esperando a hora de sair do armário. Enfim, temos um grande diálogo com essa classe média que pensava, mas não se manifestava. O antidoto será uma habilidade e um esforço quase mágicos de reestabelecer o diálogo com esses segmentos, porque sem diálogo não existe política. E trabalhar muito. E rezar muito (rs).

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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