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Habitação para todos? E os que sempre estiveram aqui?

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Em Portugal, o debate sobre o direito à habitação tem vindo a ganhar cada vez mais espaço no discurso público, e com razão. O acesso a uma casa digna não é apenas uma necessidade básica — é um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa. Contudo, à medida que se multiplicam projetos habitacionais para grupos em situação de vulnerabilidade, é legítimo levantar uma questão muitas vezes silenciada: e aqueles que, em condições normais, vivem com dificuldades reais, mas que ficam sistematicamente à margem dos apoios?

Recentemente, foi noticiado um investimento de quatro milhões de euros em habitação social, destinado a 22 famílias da comunidade cigana, que viviam em condições indignas, nomeadamente em barracas. As rendas variam entre 50 e 250 euros, valores bastante abaixo dos praticados no mercado de arrendamento tradicional. Este tipo de iniciativa tem como objetivo combater a exclusão social, promover a integração e garantir condições mínimas de dignidade humana — valores que, em si, devem ser defendidos numa sociedade justa e solidária.

No entanto, este exemplo concreto tornou-se motivo de indignação para muitos cidadãos que, apesar de não viverem em barracas, enfrentam uma realidade marcada por dificuldades profundas. Jovens licenciados, casais trabalhadores, famílias monoparentais, idosos com reformas reduzidas — todos eles a braços com rendas incomportáveis, prestações bancárias sufocantes, e a ausência de apoios reais para aceder ou manter uma habitação condigna. São os chamados “invisíveis do sistema”: pessoas que não preenchem os critérios para apoios sociais, mas que não têm rendimentos suficientes para enfrentar sozinhos o mercado imobiliário atual.

A desigualdade não se mede apenas pela comparação entre ricos e pobres, mas também pela diferença de tratamento entre os vulneráveis visíveis e os vulneráveis silenciosos. Estes últimos são aqueles que sempre trabalharam, pagaram impostos, descontaram para a Segurança Social, mas que hoje, com salários estagnados e um custo de vida a subir, se veem forçados a sair do país, a regressar à casa dos pais, ou a viver no limite da sobrevivência financeira.

Os números são claros: nos últimos anos, a juventude portuguesa tem emigrado em massa, não por desejo de aventura, mas por falta de alternativas. Muitos não conseguem sequer aceder ao crédito para habitação, enquanto outros, mesmo com crédito aprovado, enfrentam preços proibitivos nos grandes centros urbanos e uma oferta de habitação acessível praticamente inexistente.

A par disto, há uma outra realidade muitas vezes esquecida: a das pessoas com deficiência. Em Portugal, viver com uma deficiência já é, por si só, um desafio diário. Mas quando se junta a essa condição a falta de acesso a habitações adaptadas, o problema torna-se ainda mais grave. Muitos cidadãos com mobilidade reduzida vivem em prédios sem elevador, em casas com barreiras arquitetónicas, sem instalações adequadas à sua autonomia. As listas de espera para habitação social adaptada são longas, e muitas vezes nem sequer existem imóveis disponíveis com as condições mínimas exigidas.

A falta de políticas habitacionais inclusivas é um reflexo de um sistema que continua a negligenciar a diversidade das necessidades da população. Uma sociedade que se quer justa tem de garantir que todos — incluindo as pessoas com deficiência — tenham acesso a uma habitação segura, acessível e que respeite as suas limitações físicas. Não se trata de um luxo, mas de um direito. Infelizmente, na prática, este direito continua distante para muitos.

O Estado tem uma responsabilidade clara na garantia do direito à habitação. Contudo, essa responsabilidade deve ser exercida com equilíbrio, bom senso e justiça intergeracional. Quando vemos milhões de euros investidos em projetos que beneficiam exclusivamente nichos populacionais muito específicos — muitas vezes ignorando os esforços contínuos e legítimos de outras franjas da sociedade — torna-se urgente repensar o modelo de apoio social e habitacional em Portugal.

É possível apoiar comunidades desfavorecidas sem esquecer aqueles que contribuem, trabalham, estudam e lutam diariamente para manter uma vida digna. A política habitacional não pode ser uma resposta pontual e simbólica para os casos mais extremos — tem de ser estruturante, transversal e inclusiva. Um verdadeiro programa de habitação social e acessível deveria abranger não só os mais pobres, mas também a classe média empobrecida, os jovens adultos em início de vida, as famílias que vivem no limiar da sustentabilidade financeira, e as pessoas com deficiência que precisam de um lar adaptado e digno.

Esta questão torna-se ainda mais sensível quando se verifica uma perceção, justa ou injusta, de desigualdade na atribuição de apoios. Quando se comunica um projeto de habitação para 22 famílias com rendas simbólicas, e ao mesmo tempo milhares de outros cidadãos enfrentam despejos, vivem em quartos arrendados sem condições ou estão dependentes da ajuda dos pais para sobreviver, é natural que surja um sentimento de frustração coletiva. Não se trata de alimentar o preconceito, mas sim de exigir equidade.

Uma sociedade justa não é aquela que apenas ampara os que estão na miséria absoluta, mas também aquela que evita que mais pessoas caiam nesse estado. E isso só é possível com políticas preventivas, abrangentes e baseadas em critérios claros e transparentes. Importa criar mecanismos de apoio habitacional intermédio, adaptados à realidade de quem trabalha mas não consegue suportar os custos atuais. Importa também valorizar quem sempre contribuiu, quem respeita as regras, quem tenta fazer a sua parte.

Se o Estado falhar nesta missão, o que resta é o desalento e a perceção de um país que não recompensa o esforço, nem protege os seus. E essa é talvez a maior ferida que se pode abrir numa sociedade: a ideia de que vale mais estar à margem do sistema do que integrá-lo.

Este é um apelo, não contra ninguém, mas a favor de todos. Por uma política habitacional mais justa, mais equilibrada e verdadeiramente inclusiva. Porque Portugal só será um país para todos quando todos tiverem um lugar digno para chamar de casa.

António Ricardo Antunes Miranda

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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