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Há lobos na serra

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(continuação)

Já ia nos meus 7 anos adiantados quando este avô se lembrou de me perguntar: Então rapaz, gostas da escola? Olhei para ele e antes de dizer fosse o que fosse já ele comentava: A tua mãe nem te matriculou na escola?! Foi um virote de impropérios e de tomada de decisões. Na segunda-feira seguinte fui pela sua mão até à aldeia onde havia a escola. Chegado à sala, o avô pediu para falar com o professor, que já tinha sido mestre dos filhos. O professor mostrou-se reticente: Já estamos muito adiantados na matéria, já viu que só falta o terceiro período para acabar as aulas? Como é que o rapaz vai conseguir passar o ano? O avô abanava a cabeça a dizer que sim: Vai conseguir, vai. Se não conseguir repete o ano, qual é o problema? Entretanto já aprendeu umas coisas.

Nesse dia voltei para casa com o coração tão leve, tão leve, que até as minhas pernas tinham asas! Tinha um livro na sacola, uma ardósia e um giz! As letras e os números tinham finalmente entrado na minha vida pela via oficial! Eu já sabia todo o abecedário e ler algumas palavras. Tinha aprendido com os jornais que surripiava aqui e ali, pedindo que me lessem os títulos das notícias, memorizando depois as palavras num exercício diário. Também já sabia contar, até muito mais do que precisava, pois tudo à minha volta era tão reduzido. Mas finalmente ia aceder a conhecimentos que sozinho não tinha facilidade em abordar. No final desse ano letivo, com três meses de aulas, passei para a segunda classe com louvor. O avô quando soube só me disse: Muito bem rapaz, eu sabia que tu ias conseguir, agora tu também sabes.

Sinto saudades do meu pai. Raramente esteve presente na minha vida e por causa dessa ausência falo muito pouco dele. É uma dor que amansou com os anos, mas nunca desapareceu. Agora, aqui deitado neste leito de hospital e rodeado de cuidados intensivos, cheio de tubos e sem amanheceres, recordo-o. O que me resta da lembrança dele é sobretudo o sorriso, tinha um sorriso encantador.

Poucas vezes estava em casa; ou porque trabalhava fora, quase sempre em Lisboa, ou porque tinha amigos para visitar, ou porque havia um jogo de futebol, ou porque ia ao cinema…

Era um homem fora do seu tempo, que gostava de coisas que mais ninguém apreciava na aldeia. Onde a luta diária pela sobrevivência; da fome, da doença, era a única expressão cultural presente. E onde qualquer fenómeno fora da labuta diária, era sempre explicado como coisa do diabo ou então de Deus…

Ele não era nem de um nem de outro. Viveu, pois, fora desse espartilho. Estranhamente nunca foi repudiado, antes pelo contrário. Segundo me recordo, não sei se por memória própria ou de ouvir falar, era uma pessoa luminosa que enchia de vida qualquer lugar onde entrasse. Como era ainda desprendido de bens materiais não criou grandes invejas. Infelizmente a doença castigou-o e destruiu-o ainda muito jovem. Acabou os dias sentado numa cadeira, a tentar contrariar uns pulmões carregados de veneno que lhe obstruíam o respirar.

Eu ainda nem tinha entrado na adolescência quando ele morreu. Com a sua ausência definitiva fui obrigado a crescer, e do alto dos meus 10 anos, que até era um rapaz espigadote, mas longe de ser capaz de enfrentar tanto desaire, passei a ser o homem da família e a ter de assumir o que isso trazia como consequências.

Paula Sá Carvalho
in TEMPO EXTRA, Poética edições

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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