Formado em teatro pela UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), o ator Gilson de Barros trabalhou com grandes diretores do teatro brasileiro, como Augusto Boal, Domingos de Oliveira e Amir Haddad, que atualmente o dirige no monólogo Riobaldo, personagem do romance “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa.
Por sua atuação, em quase três dezenas de peças, como Murro em Ponta de Faca, de Augusto Boal, Os Melhores Anos de Nossas Vidas, de Domingos de Oliveira e A Tempestade, de William Shakespeare, além da participação na montagem da ópera Turandot, de Giacomo Puccini, recebeu importantes prêmios, como o de Melhor Ator do Festival de Teatro (SATED/RJ), em 1980 e Melhor Ator do Festival Inter-Regional de Teatro do Rio de Janeiro, em 1982.
Estudioso profundo da obra de Guimarães Rosa, tem o mérito de levá-la, em linguagem teatral, ao grande público. Após a consagração de crítica e público com o monólogo Riobaldo, prepara outros dois monólogos com personagens da obra monumental do autor mineiro: Maria Mutema e O Julgamento de Zé Bebelo.
Em que momento da vida a descoberta do teatro?
Como muitos atores, comecei no teatro amador. No bairro em que eu morava, no subúrbio do Rio, uma turma de amigos se reuniu para a montagem de uma peça. Eu tinha 16 anos. Essa peça me deu um prêmio de melhor ator, num pequeno festival de teatro. Foi o início de uma paixão, que virou profissão.
O que destaca de mais relevante no curso de teatro da UNIRIO, nos anos 1980. Os cursos de teatro têm cumprido seu papel na formação de bons profissionais?
Para mim, fazer a UNIRIO foi muito difícil. Morava longe, trabalhava e estudava na Urca, à noite. Tinha também uma coisa de eu não me achar pertencente àquele grupo de pessoas. Achava que todos eram muito preparados e eu, não. Foram tempos de grande luta interna. Juventude. Naquele tempo, não sei agora, a UNIRIO era muito mais teoria do que prática. Disso, eu não gostava. Queria fazer peças, experimentar. Mas, com certeza, a formação básica, cultural, é de suma importância para todo artista. E isso ela cumpre muito bem. Hoje, com a multiplicação das escolas de teatro, esse se tornou um caminho quase obrigatório para quem queira ingressar na profissão. De certa forma, cumprem sim, papel importante na formação. Embora, a exemplo do futebol, nenhuma escola ensine a ter talento.
Como foi ser dirigido por Augusto Boal em Murro em Ponta de Faca?
Minha experiência de palco com Boal foi curta. Apenas fiz uma substituição. Mas, claro, a maestria, a generosidade dele, foram muito importantes para um jovem, em início de carreira. Mais para frente, nos anos 1990, aí sim. Tive muito contato com Boal e o CTO (Centro de Teatro do Oprimido). Boal foi o primeiro grande nome da cultura a apoiar o movimento das Lonas Culturais, ao qual eu estava fortemente inserido.
E a experiência de atuar na montagem de ópera Turandot, de Giacomo Puccini, no Theatro Muncipal do Rio de Janeiro?
A ópera Turandot foi um grande barato. O Amir Haddad me convidou. A gente ensaiava no pátio do MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro). Eu lembro muito dele me abraçando, feliz por estarmos trabalhando juntos. Ali começou nossa parceria de teatro. Ali eu conheci a generosidade do grande diretor.
O interesse pela obra de Guimarães deu-se em que circunstâncias?
Aos dezoito anos, participei da montagem de uma peça que era uma coletânea de textos sobre sertão. Havia a cena do julgamento de Zé Bebelo. Iniciei, então, o namoro com João Guimarães Rosa. Na época, eu passei os olhos pelo livro, mas, não o li todo. Com o tempo, fui lendo, relendo e me apaixonando pela prosa roseana.
Pode nos contar um pouco sobre o processo de adaptação de trechos do romance “Grande Sertão: Veredas”, cujo resultado é o monólogo Riobaldo?
Aos 54 anos, resolvi me jogar na possibilidade de entrar no “Grande Sertão: Veredas” e fazer uma adaptação para o teatro. Comprei uma edição nova e reli, marcando tudo ou quase tudo, que achava bonito e interessante. Ao final, transcrevi essas partes marcadas para um arquivo e passei a analisar as possibilidades de uma linha de condução. Li muitos trabalhos acadêmicos, até sintetizar a ideia nos “amores de Riobaldo”. Aí o fio condutor estava montado e o trabalho foi menos difícil. Alguns pilares eu estabeleci: tornar a prosa roseana acessível, principalmente para quem não leu o livro. Apresentar Guimarães Rosa sem a coisa de ser um autor difícil. Ao contrário, mostrar um Rosa simples, popular, acessível. E, por último, não perder a condução de uma história universal, onde o principal seja o amor.
Que papel tem Amir Haddad na direção de Riobaldo?
Amir é fundamental nesse trabalho. É espetáculo feito a quatro mãos. Ele definiu toda a linha estética, teatralmente falando. Quando fiz a adaptação, pensei num espetáculo com músicas, movimentos, com toda a parafernalha teatral. No primeiro dia de ensaio, o Amir me falou: nada disso. Você vai fazer a peça sentado em um banco, sem nada de luz, som ou qualquer outra coisa que atrapalhe a palavra de Rosa chegar ao espectador. Grande Amir Haddad! Com isso, não só ele manteve a estrutura cenográfica do livro, como me apresentou técnicas de interpretação narrativa, o que muito me vale, no dia a dia. Obrigado Amir!
Dividir-se entre os palcos e a função de gestor do Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas, na cidade do Rio de Janeiro, valeu a pena? Que percalços teve de enfrentar?
Nunca é boa essa divisão, embora, necessária à sobrevivência. Eu vivia dividido, roubando o tempo de uma atividade para a outra. Só depois que me aposentei, consegui me dedicar integralmente ao teatro. A evolução é avassaladora. Mas, valeu muito a pena. A função de gestor me deu a visão total da cadeia produtiva do teatro. Conheço bem as funções técnicas do teatro, as funções administrativas. Isso só engrandeceu o ator. Percalços foram muitos. Lembro demais de um dia em que eu tinha uma filmagem marcada e o Secretário de Cultura (o chefe maior) me convocou para uma reunião. Eu não fui à reunião e passei muito tempo tentando limpar minha barra com esse chefe. Ficou feio.
As leis de incentivo ao teatro têm cumprido seu papel no país? É possível fazer teatro sem patrocínio?
As leis são importante suporte para muitas produções. Mas, acho que ainda carecem de maior democratização. Eu mesmo, nunca peguei nenhum patrocínio via leis de incentivo. Mas, não posso negar a grande importância delas. Como toda coisa pública, elas evoluem lentamente. O teatro ainda é possível sem leis de incentivo. Cada dia mais difícil, certamente, mas, se faz. Eu mesmo, tenho trabalhado assim. A peça Riobaldo montei com recursos próprios e estou tendo retorno do investimento.
Novos projetos em andamento?
Sim. Para o teatro, dentro do mesmo livro, “Grande Sertão: Veredas”, tenho mais dois projetos: Maria Mutema e O Julgamento de Zé Bebelo. Estou na fase de fazer leituras, maturando a adaptação. Depois apresentarei ao Amir Haddad e vamos trabalhar esse material, até chegar a uma peça de teatro. Primeiro, montarei Maria Mutema, até outubro deste ano. Depois, O Julgamento de Zé Bebelo, para maio ou junho de 2023. Muito trabalho pela frente. Também farei cinema, um filme bem bacana, do qual ainda não posso falar.
Sobre o autor da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.