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Fernando Pivotto: os limites e tensões entre público e plateia no teatro

Formado em teatro pela Universidade Anhembi Morumbi de São Paulo, o ator, diretor e dramaturgo Fernando Pivotto é um dos fundadores do Coletivo Inominável, cuja proposta é pesquisar os limites e tensões entre público e plateia no teatro, em montagens como A Gaivota ou Manual de Etiqueta para o Ritual de Suicídio, inspirada no clássico de Tchekov, A Casa de Bernarda Alba, de Garcia Lorca, com elenco formado por mulheres cisgênero e drag queens e Inhaí , que percorre cinco séculos de preconceito e perseguição às minorias sexuais no Brasil.

Quando a descoberta do teatro e a percepção de que ele seria seu caminho profissional?
Eu tive a sorte de estudar num colégio que oferecia o teatro como atividade extracurricular, o que me possibilitou o contato com essa experiência de estar em cena. Isso foi quando eu tinha uns treze, quatorze anos. Desde então, tem sido uma prática constante. O teatro e a experiência de falar em público, sobretudo, também me ajudaram a descobrir outras possibilidades profissionais, como meu trabalho como educador. Acredito que as duas carreiras se complementam: como educador, sou influenciado pelo teatro, porque preciso falar em público e cativar a atenção e o interesse das pessoas para o assunto. Ser educador é, em certa medida, ser um performer e como artista das cênicas, sou influenciado, porque me preocupo com uma metodologia, uma didática, um jeito de construir conhecimento junto ao espectador. Em ambos os casos, existe a tentativa de manter o diálogo com o outro e construir junto. Inhaí é o nosso jeito de fazer isso, atualmente.

Pode nos contar um pouco da história do Coletivo Inominável?

O Coletivo Inominável surgiu em 2015, com Manual de Etiqueta Pro Ritual do Suicídio, uma releitura da Gaivota, do Tchekhov, onde a gente pesquisava as mortes simbólicas pelas quais passamos ao longo da vida e as dificuldades e necessidades do fazer artístico. Em 2017, nós montamos A Casa de Bernarda Alba, nos perguntando o que era liberdade e confinamento, quais os pontos de tensão entre o individual e o coletivo e as relações de poder presentes em diversas dinâmicas de relação entre as pessoas. O que esses dois trabalhos tinham em comum, no sentido formal, é a participação do espectador. Em Manual de Etiqueta, tínhamos uma festa, pois a gente servia comida, bebida, tocava música. Em Bernarda, pesquisávamos o confinamento. A área cênica era muito apertada, de modo que público e performers compartilhavam a situação de disputar espaço num local pequeno, quase desconfortável. Agora, em Inhai, a gente mantém essa pesquisa, criando a situação de peça-conversa, peça-partilha, onde não existe separação entre nós e o público, onde a gente conversa cara a cara o tempo todo.

Como foi o desafio de escrever e montar Inhaí, em tempos fomentados pelo mais rasteiro conservadorismo social que assola o país e de onde se originou o título do espetáculo?

Essa é uma pergunta interessante, especialmente porque é a terceira vez que nos fazem, em nosso terceiro espetáculo. Nos perguntaram isso na época de Manual de Etiqueta, de novo em Bernarda e agora. Isso me faz pensar que estamos vivendo esse momento de conservadorismo há bastante tempo ou, talvez, que sejamos uma sociedade conservadora (essa é minha aposta). Então, mais do que dizer que estamos melhores ou piores – tenho medo de entrar nessa seara aqui e não conseguir desenvolver a ideia com a responsabilidade que ela demanda – vale a pena lembrar que as pautas das minorias sempre (ou quase sempre) geraram desconforto e o debate nem sempre foi bem conduzido anteriormente.Também é legal perceber como somos atores que cresceram nos anos 1980, 1990 e 2000 e existem pontos em comum em nossas infâncias, através das gerações, pois os homossexuais sempre foram o alívio cômico ou o referencial negativo. Na melhor das hipóteses, éramos vistos como os exóticos. E olhe lá! Mas sempre fomos os diferentes. É daí que surge Inhai, da nossa vontade de revisitar a nossa história, a nossa cultura, de encontrar agora, adultos, a identidade e a noção de cultura e pertencimento que nos foram negadas quando estávamos crescendo. A própria palavra inhai (jeito de falar e aí ,de acordo com o nosso pajubá) é um elogio à nossa cultura, ao nosso jeito de falar e de nos colocarmos no mundo.

Que fatos, ao longo de nossa história, são de maior relevância para nos caracterizar como uma das sociedades mais homofóbicas do mundo?

Me parece que a homofobia é algo que veio da Europa para cá, na época da colonização, uma vez que as tribos nativas tendiam a ver a relação entre homens e entre mulheres de modo natural. Houve um intenso choque de cultura entre elas e os jesuítas nesta questão. Então, desde a fundação do Brasil, a homofobia esteve presente na nossa história. Também houve o degredo de cidadãos portugueses homossexuais para as colônias – Brasil incluso – o que me parece que é um fato que ajudou a moldar a imagem que temos até hoje. Durante um bom período, a homossexualidade foi considerada crime por aqui, passível de punições físicas, multa, entre outras penalidades. Depois, essas práticas caíram ou foram suavizadas, sutilizadas, mas a cultura de que o homossexual era um indivíduo pecador, desviante da normalidade, criminoso, já estava estabelecida, ao passo que o movimento para desfazer essa noção só ganha mesmo força no século XX. Esses são alguns dos fios que compõem a tapeçaria geral, mas existem muitos outros, afinal é uma questão complexa, pois a cultura é feita diariamente, a partir de diversos vetores, e isso vai tornando a tapeçaria cada vez mais intrincada.

Qual a razão por ter optado construir Inhaí a partir dos pressupostos do teatro documentário?

O Cezar Zabell, codramaturgo e diretor do trabalho, mantém uma pesquisa com teatro documentário, desde 2013, ou seja, desde antes do Coletivo Inominável existir. Foi ele quem sugeriu quais metodologias, práticas e procedimentos deveríamos testar na construção do espetáculo. Optamos por isso por dois motivos: o primeiro é que não queríamos propor uma fábula ou uma ficção ao redor do tema. Queríamos levar à cena os documentos, as notícias, os estudos, os livros. Assim, não se tratava de mostrar nossa opinião, mas de oferecer à plateia documentos retirados de uma realidade concreta. Atualmente, em seis países, é crime passível de pena de morte ser um homem gay. Em seis países nós somos mortos só por sermos quem somos. Isso não é uma fábula, uma ficção ou uma imagem que passou por um filtro dramatúrgico. É a realidade. Assim, queremos mostrar ao espectador os dados tais quais eles são, para que ele veja a realidade tal qual ela é. Não é um e se o príncipe da Dinamarca visse o fantasma do pai assassinado e decidisse se vingar? Nem um e se um rapaz e uma garota de famílias rivais se apaixonassem? É um isso está acontecendo agora. Qual a sua opinião sobre isso? Isso encontra um ponto de ressonância diferente na plateia. O outro motivo pelo qual optamos pelo teatro documentário é que queríamos encontrar a poesia no meio da crueza dos documentos. Transitar entre a seriedade dos documentos e a poesia nos interessava como artistas.

Nas pesquisas para construção do espetáculo, quais autores e obras foram centrais?

Devassos no Paraíso, do João Silvério Trevisan e O Fim do Armário, do Bruno Bimbi, foram essenciais, assim como a pesquisa contínua do James N. Green. O documentário São Paulo em Hi-Fi, de Lufe Steffen, também. A pesquisa científica da Dra. Katie McLaughlin, psicóloga que estuda os modos pelos quais o ambiente influencia o cérebro e o desenvolvimento comportamental, também nos ajudou a jogar luz no modo como um meio hostil impacta na formação de um indivíduo homossexual , ou seja, como é crescer e viver em sociedades homofóbicas e quantas de nossas ansiedades e neuroses surgem daí.

Apesar do retrocesso político que passamos a viver de três anos para cá, não há como deixar de reconhecer que as minorias sexuais alcançaram, especialmente nas últimas duas décadas, avançamos expressivos em seus direitos. Que conquistas considera relevantes e o que mais urgentemente precisamos buscar?

Acho que vivemos um momento paradoxal: historicamente, a população LGBTQI+ nunca esteve tão amparada quanto hoje em dia. Não é crime ser LGBTQI+, como foi durante muito tempo no país. Ao mesmo tempo, estamos num país onde os índices de assassinato e demais violências contra essa população são altíssimos. Então, é bastante paradoxal. Acho que o casamento civil/união estável é uma conquista fundamental. A discussão sobre a criminalização da homofobia também é interessante, não só pela conquista dos nossos direitos, mas por fazer a sociedade pensar no sistema carcerário atual. Cito essas como homem gay, mas existem outras conquistas e urgências que podem ser citadas por lésbicas ou por pessoas trans. Me parece que essas movimentações também são importantes, porque promovem um debate na sociedade sobre a inclusão da população LGBTQI+ e seus direitos básicos. Como educador, acho que o debate, quando conduzido de modo sério, tem grande poder transformador.

Em Inhaí vemos, ao lado da discussão de questões de alta relevância sobre a homofobia, muito da alegria e da descontração do universo LGBT. Com tem sido a reação do público?

No nosso processo criativo, nos preocupamos em encontrar poesia e alegria nos espaços entre a seriedade da pesquisa científica ou das notícias do dia. Queríamos que fosse um ponto de encontro, onde pudéssemos falar de coisa séria, mas sermos alegres, celebrarmos a vida e a nossa identidade. Também queríamos estabelecer um lugar seguro, de escuta e de conversa, sem hierarquia entre os atores e a plateia. Então, poder conversar com as pessoas durante o espetáculo é sinal de que conseguimos criar um espaço de igualdade. E isso é muito bem-vindo. Também vemos pessoas saindo felizes do espetáculo, não porque estejamos tratando de um tema fácil e alegre, mas porque conseguimos celebrar a nossa identidade, apesar das dificuldades que enfrentamos. Recentemente, soubemos de um homem que foi nos assistir e, depois do espetáculo, quis ir a alguma balada. Ele não era o tipo de pessoa que gostava de festas, nem nada do tipo, mas disse que saiu tão empolgado da peça que ficou com vontade de ir festejar. Que bom que isso rolou, pois celebrar a vida é essencial.

O teatro pode ter um papel importante no debate de problemas sociais, no entanto, boa parte das pessoas ainda o vê como mero entretenimento. O que fazer para mudar isso?

Acho que existe um movimento de artistas para ir ao encontro do público e isso me parece bom. Quanto mais pessoas forem ao teatro, mais ricos serão os debates possíveis, sejam eles sociais ou estéticos. E mais pessoas poderão usufruir do potencial transformador do teatro, essa arte que nos ajuda a olhar para nós mesmos e para o nosso presente, a fim de construirmos nosso futuro. Não consigo pensar em nenhum outro antídoto, para a arte ou para vida em geral, que não seja o encontro olho no olho, cara a cara, a conversa sem verdades prontas ou hierarquia estabelecida.

Novos projetos do Coletivo Inominável?

Agora estamos apaixonados pela construção do Inhai e pelo modo pelo qual construímos um espetáculo novo a cada dia, a partir da presença do público. Estamos apaixonados pelo espetáculo, pelo público, por essa coisa que surge justamente quando estamos cara a cara com essa galera que vem nos ver à noite. A ideia agora é ficar o máximo possível em cartaz, para construir com o máximo possível de pessoas, uma sessão de cada vez.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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