De que está à procura ?

Colunistas

Feliz Natal, Maria.

Há alguns anos, um lapso na dormência da consciência levou-me, como voluntário da associação “Sem-abrigo, Um Amigo”, às ruas de Lisboa. A aventura pela cartografia marginal deixou marcas indeléveis.

Naquela noite, em reunião prévia num dos anexos da igreja de São Jorge de Arroios, foi-me atribuída a zona do Terreiro do Paço. “Menos mal…”, pensei (aliviado por ter escapado às zonas do Bairro e da Avenida de Roma, geralmente tidas por mais “pesadas”). Lá fui, na companhia de uma amiga veterana nas lides (a Cláudia), desculpando a minha presença volumosa num metropolitano em hora de ponta com estratégicos encolhimentos de pança sob a mochila dos lanches.

No Rossio, D. Pedro IV tremeluzia ao centro de uma espiral de leds azuis. Colunas de som regurgitavam um Bing Crosby soluçado (de outros natais mais brancos). Gente apressada cruzava-se indiferente, atrelada a sacos de perfumarias e de prontos-a-vestir, entre as fumarolas sulfurosas dos vendedores de castanhas. Sob o arco da Rua Augusta, o homem das gambiarras competia com o vendedor de rosas (amarrado a um perpétuo São Valentim sem “l’s” nem sorrisos) A urbe resfolgava asmaticamente.

Um dos sem-abrigo fazia anos. Alguém lembrou-se da data e do bolo. Em dois tempos, organizou-se a família de rua para os parabéns e um brinde com capri-sonnes, mesmo debaixo do nariz esverdeado de D. José (fixo no horizonte por vir). Algumas lágrimas. “Tudo isto para mim?” Comoveu-nos aquele pouco que ganhava honras de “tudo”. Os minutos corriam, sem indulgência para marinar a redescoberta dos pequenos gestos, ou digerir a grandeza inesperada. Foi assim (sem selfies nem repórteres). Ponto. Feito. Toca a andar.

Nas arcadas do Terreiro do Paço dezenas de pessoas faziam de maltrapilhas caixas de cartão o seu leito. Recordo, com surpreendente nitidez, uma família: pai, mãe e filha. Sorridentes, apesar de tudo (ou melhor, apesar do nada). O pai, trabalhador num reputado centro comercial da capital, acolhia com boa disposição a refeição que havíamos preparado: uma maçã, duas sandes mistas, dois sumos e um pacote de bolacha para cada um. Tentava, em vão, perceber os estranhos caprichos da vida.

Entre mãos que se distendiam a medo e desabafos hesitantes, acabaram-se as merendas – mesmo antes de chegarmos ao pé de um casal (que nem papelões para dormir tinha), aninhado no degrau da porta do Ministério das Finanças. Eram muito jovens. Viemos a descobrir, por gestos atabalhoados e alguma habilidade poliglota, que eram romenos, que tinham fugido de um qualquer drama familiar (que deixei cair no baú da irrelevância) e que tinham fome. Ela estava grávida – em final de gestação. “What’s your name?”, perguntámos – não consigo, agora, recordar o nome do rapaz, mas jamais esquecerei a resposta da companheira: “Maria”, disse, com a mão sobre o ventre. Em ambiente natalício, a coincidência não nos passou em claro.

Sem nada para oferecer, e diante daquela imagem pungente, olhámos em volta, desnorteados. “Há, ali atrás, um café onde servem sopas!”, lembrou-se a Cláudia. Contámos os tostões e fizemos contas de cabeça. “Sim, é capaz de dar…” Fizemos sinal para que nos seguissem. Andámos um ou dois quarteirões. Apesar da miséria, havia alegria naquela família incipiente (e se dúvidas houvessem, bastaria ver os passos ligeiros de Maria, ao ouvir o tocador de flauta na esquina da Rua do Ouro). Jantámos os quatro, nessa noite fria. Uma consoada inesperada, naquela Belém de todas as esperanças – na crença do pouco que em tudo se transforma.

Feliz Natal, Maria.

João Márcio de Matos

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA