Lembro-me muito bem do dia em que votei pela primeira vez. Foi em finais dos anos 70, num domingo azulado e soalheiro já com rigores de dezembro a lamber o ar. Saí de casa pouco depois do meio dia, à hora em que, nesse tempo e naquele bairro, os homens liam o jornal e conversavam no café e as mulheres estavam na missa ou já em casa a preparar o almoço. É difícil descrever as emoções que me agitavam nessa manhã: era como se eu não coubesse na minha pele de tanta felicidade; sentia-me mulher adulta e poderosa, inteira e ciente do meu papel de cidadã da democracia e grata a todos os homens e mulheres que, durante décadas, tinham lutado para que eu e todos tivéssemos aquele tesouro nas mãos: o direito de votar em eleições livres. Em eleições que seriam determinantes para nos aproximarmos mais de ti, Europa querida.
Era domingo. Deixara de frequentar a igreja há muito e, consequentemente, não precisava de escolher um fatinho de ir ver a Deus. Porém, tinha-me ficado o hábito ou o gosto de caprichar na vestimenta aos domingos. Coisas da minha avó? É que o bairro estava na rua, era-se visto por olhos aguçados e cumprimentado, por vezes com meros acenos de cabeça e ergueres de chapéus, outras pelos beijinhos da praxe e os diálogos de circunstância. «Como está a sua mãezinha?» Era domingo e era preciso ter paciência, que diabo! E refleti longamente sobre o que vestir para me apresentar solene e dignamente perante as urnas.
Foi assim que vesti umas calças à boca de sino, uma camisa grossa estampada, um cinto do mais puro plástico, as únicas botas com sola compensada que tive na vida e brincos e colares, tudo comprado nos Porfírios. E por cima vesti uma gabardina, que deixei aberta, também de materiais plásticos, de um intenso azul petróleo orlada na gola e nos punhos com uns debruns laranja choque. E uma sacola psicadélica. Estava fantástica.
E aí fui eu, pelo largo passeio da avenida, rumo à minha assembleia de voto, situada no liceu lisboeta onde eu tinha concluído o ensino secundário e por onde tinham passado alguns dos nomes que mobiliariam as elites partidárias de todo o espectro político durante décadas. Avançava, pois, a passos largos, segura e confiante, como a rapariga daquele anúncio televisivo dos pensos higiénicos. A olhar para diante, como que de olhos postos no futuro, vejo avançar na minha direção um rapaz tão seguro e confiante quanto eu. Nessa altura eu tinha por hábito não me desviar um milímetro que fosse da minha trajetória. Que se desviasse quem viesse no sentido oposto.
O rapaz avançava rapidamente. Pelo andar gingão, não se tratava de um filho da pequena burguesia, antes de um popular que talvez fosse mecânico numa das oficinas que pululavam nas ruelas industriais do bairro. Não teria ainda 30 anos e parecia ter caprichado tanto quanto eu no fatinho de ir a votos: calças de bombazina azul escuras, casaco grená cintado com chumaços nos ombros a acentuar a cintura escapular, camisa branca aberta até ao terceiro botão, fio de ouro com cruz ao pescoço, cabelo escuro ondulado a roçar levemente os ombros, rosto escanhoado de fresco. No último momento, antes de um embate que parecia inevitável, estacámos simultaneamente e ambos recuámos um passo. Olhou-me nos olhos, esboçou um leve sorriso e disse com uma voz cavernosa de Marlon Brando:
«Que pena que eu tenho de não poder votar em você!».
E rebentámos a rir às gargalhadas. Depois, despedimo-nos com um aceno de cabeça e cada um seguiu o seu caminho. E eu fui votar.
Não é desse piropo que tenho saudades – por favor não votem em mim para mais coisa nenhuma! – nem mesmo da minha juventude. Tenho-as do tempo em que o povo acorria às urnas em massa, porque havia esperança e porque acreditávamos estar a construir um futuro melhor, mais livre e mais justo para todos. Acreditávamos, Europa querida, que eras o nosso destino e a nossa vocação e por isso íamos votar nos partidos que pugnavam por ti. Íamos votar pelo desenvolvimento, pelo pleno emprego e pela paz.
No próximo dia 9 de junho, no Luxemburgo, lá irei votar nas eleições que decidirão quem te irá governar nos próximos cinco anos, Europa querida. É tão importante! Talvez seja por isso que tenciono pôr-me bonita, caprichar uma vez mais na roupa e no calçado. Talvez até ponha um vestido, a peça que, na verdade, mais gosto de usar. Vai estar calor e a distância entre a minha casa e o local de voto será pouco mais de 500 metros. Posso perfeitamente calçar umas sandálias bonitas com um salto elegante. Para afugentar o medo, como fazia quando tinha provas orais na faculdade.
O medo de que uma maioria de extrema-direita no Parlamento Europeu nos faça retroceder a tempos de violência, guerra e obscurantismo a que tínhamos dito «Nunca mais!».
Europa querida, estou a falar a sério. Fascismo nunca mais.
Eduarda Macedo