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“Eldorado”: espelho meu

Imagine que é presidente dos Estados Unidos e que de repente descobre a série televisiva “House of Cards”. Ou então – um exemplo mais realista – imagine que é assassino em série e dá de caras com as aventuras de Dexter. Mais fácil ainda: imagine que é imigrante português no Luxemburgo e vai ver o documentário “Eldorado”.

É natural que, como espectador e como actor dessa imigração no dia-a-dia, tenha muito a dizer sobre o filme. Que a sua vida “não é bem assim”, que “a realidade não é bem essa”, que aquela “é uma minoria”, que os criadores do filme “não percebem nada da comunidade portuguesa no Luxemburgo” e que então “aquele fim não tem ponta por onde se lhe pegue”.

Os comentários que aqui reproduzo entre aspas são reais. Ouvi-os todinhos e muitos mais no final da primeira projecção de “Eldorado” no âmbito do Luxembourg Film Festival, onde a obra de Rui Abreu, Thierry Besseling et Loïc Tanson foi apresentada em ante-estreia. Também ouvi muitos espectadores a dizerem que “sim, gostei”, e outros a reconhecerem que no final “até larguei uma lágrima”.

Uma coisa é certa, nenhum português a viver no Luxemburgo ficou indiferente a “Eldorado”. Porque o documentário fala de nós. De nós, daqueles que aqui vivem, no Luxemburgo.

Mas o documentário podia ser sobre qualquer outra nacionalidade imigrada no Grão-Ducado. Mais: os realizadores até admitem que podia ser a história de qualquer pessoa em qualquer sítio do mundo. Mas não é. É sobre portugueses e afins neste pedacinho de Europa que se chama Luxemburgo. E, por acaso, é aqui que o público de “Eldorado” está, e isso faz toda a diferença.

Há quem goste de se ver ao espelho. Há quem o evite. Há quem não goste de recordar o passado porque dói. Há quem tenha orgulho nas dificuldades que viveu. Seja qual for a nossa posição relativamente à opção de emigrar, todos temos uma relação mais ou menos emotiva com o facto de estarmos num país onde não nascemos. E isso provoca reacções distintas, sentimentos variados.
Os três realizadores de “Eldorado” não sabiam no que se estavam a meter quando encetaram o projecto. Foram sete anos de trabalho à procura de pessoas, de vivências que pretendiam o mais universais possível. E não imaginavam que o seu documentário iria levantar tantas reacções à flor da pele, boas e más.

Contudo, “Eldorado” vai para além das migrações: é um filme sobre a busca de uma vida melhor, que por acaso – para metade dos “protagonistas” – passou pela etapa fronteira e por deixarem o seu país de origem.

Os protagonistas do documentário são quatro: o jovem Jonathan busca um contexto familiar mais positivo que o ajude a definir-se a si próprio, Carlos resvala para a marginalidade e não consegue emprego, Isabel fugiu de uma vida doméstica marcada pela violência e Fernando procura o êxito profissional sem que as fronteiras representem um obstáculo.

Todos querem melhorar as suas vidas a nível material mas sobretudo pretendem ser mais felizes. E aqui é que a porca torce o rabo. O “eldorado” luxemburguês parece não ser para todos. Diz quem sabe, no documentário, que “já foi tempo”, que agora “só quem está cá há muitos anos é que se safa”. E se o aspecto material é complicado, a vida sentimental também não se revela nada fácil.

Os realizadores, demonstrando grande paciência e imensa empatia, vão acompanhando as suas personagens, deixando-as crescer, deixando-as viver. Passado um quarto de hora de projecção já pensamos que estamos perante uma obra de ficção.

Os criadores decidem, em quase todos os planos, destacar os rostos das suas “estrelas” marcados por emoções variadas. Mas nunca explicam, nunca tomam partido e deixam o espectador catalogar e – porque não? – imaginar um futuro para Jonathan, Isabel, Carlos e Fernando, quase como se pudesse haver um “Eldorado 2″…

Como acontece com todas as escolhas na vida, também a selecção destas quatro pessoas para serem protagonistas tem consequências. A principal acusação de que o filme foi alvo é a de reproduzir estereótipos pois nem todos os imigrantes que chegam ao Luxemburgo são assim ou atravessam este caminho de cruz. É verdade. Também é certo que “Eldorado”, quando for projectado em Portugal, ajudará a ancorar ainda mais a imagem de que os homens portugueses trabalham todos nas obras e as mulheres na limpeza, mas esse é um problema de mentalidades e de imagem que urge resolvera outro nível. “Eldorado” efectivamente não ajuda, mas não creio que tivesse más intenções.

O filme, tecnicamente muito bom, vai certamente ter uma longa vida nas salas, nos festivais e, sobretudo, em projecções escolares ou para ilustrar conferências sobre migrações.

“Eldorado” é um documentário de Rui Abreu, Thierry Besseling et Loïc Tanson, produzido pela Samsa Films.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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