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E se existissem museus dos cheiros do passado?

Desde o antigo pensador grego Aristóteles, considera-se que existe uma hierarquia dos sentidos humanos. A visão surge como o mais importante, seguida da audição, com o olfato, o paladar e o toque mais abaixo.

Mas se os sentidos como o olfato recebem menos atenção no aqui e no agora, não recebem quase nenhuma quando se trata do passado. Quando pensamos na história cultural – talvez visitando um museu ou olhando para a arte clássica – tendemos a confiar exclusivamente nos nossos olhos. No entanto, o olfato, quando entra em jogo, pode ser fortemente evocativo. Por isso talvez seja apropriado os investigadores estarem a prestar muito mais atenção aos cheiros do passado.

A maioria dos historiadores que se têm debruçado sobre isto tende a pensar que, uma vez que a higiene não era o que é agora, o cheiro mais avassalador do quotidiano fosse o odor do corpo humano. A historiadora de arte Érika Wicky nunca tinha questionado esta suposição, até ter procurado nos jornais dessa altura e começado a notar anúncios de vernizes isentos de cheiros. Isso lembrou-lhe que os vernizes da época eram normalmente produtos químicos extremamente fortes com cheiros desagradáveis. Isto fê-la pensar como teria sido o cheiro do estúdio de um artista.

Na altura, Wicky trabalhava no Laboratório de Investigação Histórica Rhône-Alpes em Lyon, França. Um dia, ouviu falar de um armário de mistura de cores que pertencia ao pintor francês Fleury Richard, que pintou no virar do século XIX.

O armário tinha sido conservado em ótimo estado nas entranhas do Museu de Belas Artes de Lyon. Foi armazenado com mais de 100 pigmentos e outros materiais do artista, cada um embrulhado em papel, com notas escritas pela mão do pintor dizendo o que era cada um.

“É um objeto bonito, mas perigoso”, disse Wicky. “Alguns dos pigmentos contêm 60% de arsénico”. Percebeu que este armário seria uma grande fonte para explorar o cheiro do estúdio de um pintor. E assim começou um projeto chamado PaintOdor, com o objetivo de descobrir como seria o cheiro dominante num estúdio de pintura. Usando as provas do armário, os materiais escritos da época, e os conhecimentos de outros especialistas, Wicky mostrou que haveria quatro cheiros principais em suspensão no estúdio de um pintor da altura.

Trata-se de óleo de linhaça e terebintina, utilizados para misturar tintas de óleo; cola de pele de coelho, utilizada para enrijecer as telas; e o cheiro do verniz aplicado sobre a pintura terminada para a proteger.

Wicky tem colaborado com perfumistas na empresa suíça de aromas e fragrâncias Givaudan para recriar os cheiros destes materiais (alguns dos verdadeiros produtos químicos, como a terebintina, são demasiado tóxicos para serem utilizados). O plano é utilizá-los numa exposição de quadros de Richard no museu de Lyon, no próximo ano. Pretende dar aos visitantes um folheto para os guiar ao longo de uma exposição, de onde qual poderão descascar autocolantes para cheirar os odores dos materiais dos artistas.

A especialista está agora a terminar um livro sobre o seu projeto. Espera continuar a estudar o papel do olfato na pintura clássica. Assinala que o olfato era também uma forma dos pintores adquirirem conhecimentos. Verificavam frequentemente a composição dos pigmentos, que eram muito caros, queimando pequenas quantidades e farejando-os para verificar se os comerciantes não estavam a tentar enganá-los.

Um segundo trabalho de investigação poderia alargar muito mais o âmbito do nosso conhecimento dos cheiros históricos. O ODEUROPA é um projeto no valor de 2,8 milhões de euros, financiado pela UE com o objetivo de desenvolver formas de capturar a cultura olfativa histórica da Europa e explorar como instituições como os museus podem usar o olfato para aumentar o impacto das suas coleções.

“Este é o primeiro projeto de investigação europeu a desenvolver metodologias informáticas de ponta para captar e documentar o papel que o cheiro tem desempenhado – e ainda desempenha – na nossa cultura”, diz Inger Leemans, da Royal Academy of Arts and Sciences (KNAW), nos Países Baixos.

Para começar, a equipa analisou um grande número de registos digitais – imagens, textos de pinturas do século XVII até ao início do século XX e identificou-os para destacar referências ao olfato. Em seguida, treinaram um algoritmo de aprendizagem automática para reconhecer estas referências aos cheiros, tendo depois definido o algoritmo para trabalhar em “caches” de obras de arte e fontes históricas em bases de dados académicas. Isto permitiu à equipa produzir uma teia semântica de odores (chamada Gráfico Europeu do Conhecimento Olfativo), que pode ajudar os investigadores a compreender como e onde os odores foram criados, experimentados e compreendidos. A equipa tem publicado vários artigos a detalhar a sua metodologia. A esperança é que esta teia de conhecimento permita aos investigadores explorar a forma como os cheiros evoluíram ao longo do tempo.

“Estamos atualmente a desenvolver um motor de busca que pode ajudar os utilizadores a descobrir odores relacionados entre si, num processo semelhante ao dos motores de busca da Internet”, diz o membro da equipa Marieke van Erp. Ainda não disponível ao público, está prevista uma versão na web num futuro próximo.

Outra parte importante do projeto envolve dar às instituições culturais uma maior capacidade de comunicar ao público a importância dos aromas. Em novembro de 2021, a equipa realizou uma visita de teste ao Museu de Ulm na Alemanha onde os visitantes puderam ver a arte e sentir cheiros relevantes do passado à medida que iam avançando.

Por exemplo, os visitantes viram uma pintura de 1628 de uma mulher rica segurando um par de luvas de couro perfumado. Essas luvas eram um presente popular e um acessório na moda na altura. E a equipa trabalhou com perfumistas da empresa International Flavours and Fragrances para recriar o cheiro de modo a que os visitantes pudessem senti-lo ao ver o quadro.

“No geral, os visitantes têm gostado muito da experiência”, diz George Alexopoulos, outro membro da equipa. “Para muitos, utilizar o olfato para pensar em objetos, histórias e lugares é uma proposta interessante, nova e diferente”.

Uma parte interessante da investigação foi observar que as pessoas reagem aos cheiros de forma diferente. Existem certos cheiros que algumas pessoas não conseguem detetar, por exemplo. E, durante o projeto do Museu de Ulm, a equipa concebeu algo que deveria representar o cheiro do inferno, retratado num quadro. Alguns visitantes acharam-no claramente desagradável enquanto outros consideraram-no demasiado agradável para se enquadrar num conceito tão aterrador como o inferno.

A equipa espera que, no futuro, outros projetos de as instituições culturais possam recorrer aos seus métodos e ferramentas para incorporar ainda mais as sensações olfativas. De momento, continuam a desenvolver outras excursões malcheirosas. A mais recente, chamada City Sniffers, é um passeio a pé por Amesterdão onde as pessoas podem levar consigo um cartão com zonas de raspar para poderem experimentar odores relevantes ao longo do percurso.

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