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E Salomão desceu à terra… num templo cristão

De tal forma é proverbial a fama de Salomão, que este monarca antigo transformou-se num dos modelos de Sabedoria até aos dias de hoje. Dificilmente se podem compreender as civilizações que nasceram no Mediterrâneo sem ir beber a esta figura.

Para além da Sabedoria, a sua figura ficou, também, ligada à ideia de Templo que o judaísmo desenvolveu. Quer a do templo em si, quer a de tudo o que tem a ver com a sua efectiva inexistência histórica, remetendo a teologia para tempos de fim, para catarses e para apocalipses e messias.

Numa das minhas últimas idas ao Brasil, fui mais uma vez a um templo da IURD, neste caso ao proclamado Templo de Salomão.

Nesse templo, tudo é, de facto, judaizante, procurando uma legitimidade simbólica onde, ao centro, o altar é uma figuração da Arca da Aliança. Mas a simbologia multiplica-se: uma menorah está no mesmo altar e, com uma altura imensa, doze outras estão reproduzidas nas gigantescas paredes, sem contar com o quase cómico e infantil uso da escrita, onde surge, por cima desse altar, uma frase num exagerado lettering de caracteres latinos “hebraizados” – com “sabor” a hebraico…

Tudo no espaço é uma leitura simplista da simbologia que muitas igrejas neopentecostais têm recriado nos últimos 30 anos. Uma verdadeira judaização do cristianismo onde o chamado Judaísmo Messiânico é o culminar de uma corrente cristã que assume em muito uma postura de manutenção da Lei Mosaica dentro do Cristianismo. Uma tentativa de regressar a um cristianismo anterior à abertura que Paulo lhe deu ainda no séc. I, antes dessa nascente religião se ter autonomizado do judaísmo.

Neste caso, no Templo de Salomão da IURD, o folclore é levado ao limite da encenação. Os Pastores surgem com a kipah na cabeça, com o talit sobre os ombros. Mas, e de Templo de Salomão?

Esse é, afinal o grande ausente deste espaço. Arquitectonicamente, a fachada remete-nos para os templos assírios da época, que em tudo deveriam ser semelhantes ao templo de Jerusalém. Mas nada mais.

Se, por um lado, parece ter havido a preocupação de trazer pedras de Israel, numa simbologia taumatúrgica que nos faz lembrar as velhinhas, as beatas ridicularizadas por Eça de Queiroz por comprarem algumas gramas de areia da Terra Prometida ou uma lasca do Santo-Lenho; por outro lado, a vivência interior do espaço em nada nos remete para a sacralidade que o texto bíblico nos ensina e nos diz: a hierarquia dos espaços, a gradual aproximação ao Santo-dos-Santos. Tudo ali é, ao mesmo tempo, sagrado e profano, redefinindo a própria noção de Templo.

No fundo, estamos num Templo de Salomão à la carte, onde foi apropriado aquilo que era útil. Por exemplo, havia que dar um tom de sacralidade a quem anda pelo templo…. assim, nasceram umas meninas vestidas de branco imaculado que em certa altura seguram no saco onde se depositam os dízimos. Essas meninas são chamadas de… Levitas! Fica forte.

E este episódio faz-nos pensar profundamente nas mecânicas de apropriação simbólica e nas construções e desconstruções que esses processos de legitimação implicam.

Podia ter aqui colocado uma fotografia da fachada ampla, uma imagem que mostrasse a magnificência do grandioso edifício. Mas pareceu-me mais próprio desta apropriação simbólica esta imagem em que mal se percebe o templo imponente através de um emaranhado de fios eléctricos.

Disse jocosamente um amigo a quem enviei a fotografia: “os fios estão a segurar o enquadramento!”. E é isso mesmo. Este enquadramento simbólico a que chamam Templo de Salomão está pendurado no universo dos significantes religiosos por fios que seguram, e mal, o que não está nada de acordo com o que deveria ser.

E o que em primeiro lugar está mal nesta fotografia é a soberba que significa ter-se construído um edifício a que chamam Templo de Salomão. Numa cultura religiosa claramente tão judaizante, parece ter escapado o fundamental: para a leitura judaica, a reconstrução do Templo é marca de fim dos tempos, de vinda do Messias. Portanto, apenas por obra de Deus o templo pode ser construído…. não por ordem de um humano.

E neste ponto, percebemos plenamente a revolta das comunidades judaicas que já estão a usar os tribunais para defender as suas tradições. É claro que podemos sempre dizer que o significado e, por conseguinte, o uso dos símbolos, é universal e não pode, nunca, ser “marca registada” de uma confissão. Contudo, neste templo da IURD foi-se realmente muito longe no uso arbitrário de uma simbologia que, obviamente, também é de outros – e neste caso, há muitos, mas mesmo muitos séculos.

Estranho, se um fim dos tempos pelo judaísmo implica finalmente uma época de Paz, a construção deste templo, em vez de dar início a essa época, lança discórdias e cimenta uma visão apenas unívoca, centrada numa vontade absoluta, inquestionável e arrogante.

É mais um sinal dos tempos medíocres em que vivemos e que nos mostra como é cada vez mais complexo o universo das religiões – como sempre o foi, é claro.

 

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