De que está à procura ?

Colunistas

Desta é que foi Eça!

© Lusa

A trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional marca um momento histórico e, simultaneamente, uma oportunidade para refletir sobre a dimensão cultural e política que este gesto encerra. O evento, recheado de discursos e homenagens, foi um tributo tardio, mas justo, a um dos maiores vultos literários da nossa pátria. Contudo, por entre os elogios e a pompa oficial, não pude deixar de notar certa desconexão entre as palavras proferidas e a essência mordaz e crítica do próprio Eça, que em vida não poupou as elites políticas e culturais do seu tempo. Eça no Panteão? Sim, mas talvez não sem um sorriso irónico, próprio da sua sagacidade literária.

A trasladação de Eça de Queirós para o Panteão Nacional é, sem dúvida, um marco histórico, mas também um momento carregado de simbolismo. É um reconhecimento merecido, ainda que tardio, àquele que nos ofereceu um espelho — muitas vezes implacável — da sociedade portuguesa do seu tempo, e que, ironicamente, continua a reflectir o nosso presente. Contudo, para compreender a verdadeira dimensão deste tributo, é essencial olhar não apenas para as suas obras, mas também para a vida de Eça, marcada pelas viagens, pelos encontros e pelos lugares que moldaram o seu génio literário.

Um tributo merecido, mas tardio

Não há dúvida de que Eça de Queirós merece o lugar no Panteão Nacional. Autor de obras imortais como Os Maias, O Crime do Padre Amaro e A Cidade e as Serras, Eça capturou como ninguém os vícios e as virtudes da sociedade portuguesa de finais do século XIX. A sua prosa, ao mesmo tempo elegante e ácida, foi uma lupa sobre a hipocrisia, a corrupção e o provincianismo que ainda hoje, dir-se-ia, ecoam em algumas esquinas da nossa sociedade.

Mas a questão que fica é: por que demorámos tanto tempo a honrá-lo? Num país que muitas vezes esquece os seus grandes homens e mulheres, a trasladação de Eça parece um ato de redenção tardio. Curiosamente, o escritor que tanto criticou o compadrio e a lentidão burocrática das instituições portuguesas teve de esperar mais de um século para ser reconhecido ao mais alto nível. Pergunto-me o que diria Eça sobre esta homenagem — ele, que escreveu em Os Maias: “Portugal é um país de rotinas, administrado por rotineiros, num sistema rotineiro”.

De Póvoa de Varzim ao mundo: um homem entre culturas

Nascido na Póvoa de Varzim, em 25 de Novembro de 1845, Eça de Queirós desde cedo revelou o espírito inquieto que o caracterizaria ao longo da vida. Foi criado em Vila do Conde, numa casa austera e burguesa, mas foi em Coimbra, durante os anos universitários, que se deu o verdadeiro despertar da sua mente criativa. A convivência com outros jovens intelectuais no ambiente efervescente da universidade permitiu-lhe alicerçar as ideias que mais tarde desafiariam o conformismo da sociedade portuguesa.

Após licenciar-se em Direito, iniciou uma curta carreira como advogado, mas rapidamente percebeu que o seu talento estava noutra esfera. Foi em Lisboa que começou a dar os primeiros passos na escrita jornalística e literária, frequentando os salões da capital, mas sempre com um olhar crítico. Lisboa, que mais tarde descreveria com ironia e desencanto em obras como Os Maias, foi uma das primeiras grandes influências na sua visão do mundo.

O Oriente: um fascínio exótico

Uma das experiências mais marcantes da vida de Eça foi a sua viagem ao Egipto em 1869, para assistir à inauguração do Canal do Suez. Este episódio inspirou não só a sua imaginação, mas também a sua sensibilidade estética. É impossível não sentir o Oriente em algumas das suas descrições mais poéticas, como em A Relíquia, onde o protagonista Teodorico embarca numa viagem que combina ironia e misticismo. Essa experiência, contudo, também lhe reforçou o sentido crítico: Eça via no exotismo do Oriente um contraste com a pequenez de uma Europa demasiado obcecada com as suas convenções e tradições.

O impacto dessa viagem foi também político. Ao observar a complexidade cultural e social de outros territórios, Eça ganhou uma perspectiva mais global, permitindo-lhe criticar com maior profundidade os problemas que identificava em Portugal. Talvez tenha sido no Egipto, sob o calor abrasador do deserto, que Eça reforçou o tom cosmopolita que viria a distinguir a sua obra.

A diplomacia: entre Paris e Londres

A carreira diplomática de Eça de Queirós levou-o a lugares que viriam a moldar não apenas a sua obra, mas também a sua visão de Portugal e do mundo. Foi cônsul em Havana, mas foi durante as estadias em Inglaterra e França que encontrou o ambiente intelectual que mais o desafiou e estimulou.

Londres e Paris eram, na época, os epicentros da modernidade e da revolução cultural. Em Paris, absorveu as ideias realistas e naturalistas, especialmente através da influência de autores como Flaubert e Zola, que o ajudaram a afinar a sua linguagem e a sua abordagem literária. Londres, por outro lado, ofereceu-lhe uma visão directa de uma sociedade industrializada, com todas as suas contradições. A Inglaterra vitoriana inspirou-o a contrastar a dinâmica anglo-saxónica com o marasmo português, um tema recorrente em obras como A Cidade e as Serras.

Curiosamente, Eça nunca deixou de se sentir um estrangeiro nesses locais. Em Londres, escreveu: “Aqui a civilização triunfa, mas falta-lhe a alma. Falta-lhe a ternura e o calor do Sul.” Essa dicotomia entre o progresso e a humanidade é uma constante no seu pensamento e atravessa toda a sua obra.

Relatos dos locais por onde passou

Eça tinha o dom de transformar os lugares em personagens. Em Os Maias, Lisboa emerge quase como um protagonista: as suas ruas, os salões aristocráticos e os espaços de lazer são descritos com uma precisão e detalhe que nos transportam para a época. Em contraste, a pacatez bucólica de Tormes em A Cidade e as Serras serve de pano de fundo para uma crítica ao artificialismo da modernidade.

O Egipto, por outro lado, aparece em A Relíquia como um lugar mágico, mas também carregado de ironia, reflectindo o fascínio e o cepticismo que Eça nutria em relação aos mitos religiosos e culturais. Os locais que visitou não são meros cenários; são espelhos das suas ideias, reflexos da sua crítica social e política.

O homem por detrás da obra

Mas quem foi, afinal, Eça de Queirós? Para além do escritor e do diplomata, havia um homem profundamente humano, apaixonado pela arte, pela gastronomia e pelas pequenas delícias da vida. Apesar do tom crítico das suas obras, Eça era, na vida pessoal, afável e encantador. Amava o convívio e era um excelente contador de histórias, capaz de cativar qualquer audiência.

A sua vida familiar, marcada pela dedicação à esposa Emília e aos filhos, foi também uma faceta menos conhecida do homem que parecia viver para criticar o mundo. Mesmo nos últimos anos, já debilitado pela doença, Eça manteve a sua lucidez e o seu humor. Foi em Paris, em 1900, que faleceu, longe da sua terra natal, mas deixando um legado que transcendeu fronteiras.

Eça no Panteão: homenagem ou ironia?

A trasladação de Eça para o Panteão Nacional pode ser vista como um tributo tardio a um génio literário, mas também como um acto cheio de ironia. Afinal, estamos a honrar um homem que passou grande parte da sua vida a criticar as instituições e os costumes do país que agora o celebra.

Será que Eça se sentiria confortável entre as paredes do Panteão, ao lado de figuras que ele próprio teria desconstruído com a sua pena mordaz? Talvez sim, talvez não. O certo é que, mais do que em qualquer monumento, Eça viverá sempre na leitura das suas obras, na inspiração que continua a oferecer a gerações de escritores e leitores.

Os discursos da trasladação: entre a exaltação e a superficialidade

Os discursos proferidos durante a cerimónia de trasladação variaram entre a exaltação da figura de Eça e reflexões genéricas sobre o valor da cultura portuguesa. Louvaram-lhe o génio, a visão crítica e a modernidade intemporal. Porém, senti falta de uma análise mais profunda do impacto da obra queirosiana na nossa sociedade contemporânea.

Por exemplo, seria interessante ouvir algum representante político reflectir sobre o papel das elites atuais, tão escrutinadas por Eça em Os Maias ou A Ilustre Casa de Ramires. Poderiam ter comentado a actualidade dos seus retractos de uma burguesia ociosa e de um clero corrupto em O Crime do Padre Amaro. Mas talvez fosse pedir demasiado que, num momento de celebração, alguém tocasse nas feridas que Eça tão bem soube expor.

A homenagem, embora necessária, pareceu-me em alguns momentos superficial, quase como se o Estado pretendesse apropriar-se de um legado que, em vida, o próprio Eça certamente questionaria.

Conclusão: um Eça sempre presente e que permaneça vivo

A trasladação de Eça de Queirós para o Panteão Nacional é, sem dúvida, um momento simbólico e necessário. Contudo, é também um convite à reflexão. Que tipo de país queremos ser? Um país que celebra os seus grandes homens e mulheres com cerimónias protocolares, mas os esquece no dia-a-dia? Ou um país que honra verdadeiramente o seu legado, promovendo a leitura, a educação e a crítica social que Eça tanto valorizou?

Que esta homenagem não seja apenas uma celebração do passado, mas uma inspiração para o futuro. Que saibamos, como Eça nos ensinou, olhar para nós próprios com olhos críticos, sem medo de reconhecer as nossas falhas e sem receio de aspirar a mais. Afinal, como o próprio escreveu: “O que caracteriza o homem superior não é ver o futuro: é olhar para o presente com olhos muito claros.”

Honrar Eça de Queirós é mais do que colocá-lo no Panteão; é garantir que o seu legado perdure. É assegurar que as suas obras sejam lidas, discutidas e ensinadas. É olhar para os lugares que ele amou e odiou — Lisboa, Paris, Londres, o Egipto — e ver neles as mesmas contradições que ele tão brilhantemente captou.

Eça, mais do que um escritor, foi um espírito crítico, uma voz que nos desafiou a olhar para nós próprios sem complacências. Que a sua trasladação não seja apenas uma homenagem ao passado, mas um convite para pensar o futuro. Afinal, como ele próprio escreveu: “Um país só se salva se tiver escolas, escolas e escolas.” Que saibamos aprender com Eça, não apenas a celebrá-lo.

Eça, o mais crítico e clarividente dos nossos escritores, agora repousa no Panteão Nacional. Mas a sua verdadeira morada será sempre o coração e a mente de quem o lê. Que saibamos merecê-lo.

António Ricardo Miranda

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA