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Dennis Meadows e a dissonância cognitiva

© DR

Quando nasci a internet ainda não existia. Haviam bons conteúdos para crianças, mas eram difundidos pela televisão. Ou seja, só estavam disponíveis num período pré-determinado, aos fins de semana de manhã. Ao sábado não eram mais que duas horas de desenhos animados entre as 10h00 e as 12h00.

Naquelas horas de espera, entre o pequeno almoço e o início da emissão infantil, matava o tempo a ouvir música (cedo aprendi a manusear o gira-discos). Ao mesmo tempo folheava um dos calhamaços das enciclopédias do Reader’s Digest que os mais pais compravam. Não me lembro sequer se já sabia ler, o mais interessante eram sempre as imagens. Entre esses livros temáticos havia um sobre o Futuro (ou o Passado) com umas figuras curiosas em que curvas em forma de sino se espraiavam por toda a página, passando de cores alegres à esquerda para tons escuros à direita. Havia algo de fascinantemente dramático naqueles sinos. Ao lado uma pequena fotografia a preto e branco mostrava um rapaz de óculos junto a um primitivo ecrã de computador.

Esse rapaz chama-se Dennis Meadows e figura naquela enciclopédia por ter liderado o estudo que resultou no famoso livro “Limites ao Crescimento”. Encomendado pelo Clube de Roma, Dennis e a sua equipa aplicaram métodos desenvolvidos no MIT para explorar os caminhos possíveis a uma sociedade que crescia exponencialmente num planeta finito. A principal conclusão foi que nas primeiras décadas do século XXI a economia mundial enfrentaria sérias dificuldades para continuar a aumentar o consumo de recursos naturais. Resultado famoso, mas longe de consensual, valeu à equipa do MIT muita imprensa negativa. Ainda antes de completar trinta anos, Dennis Meadows era já um velho do Restelo.

Conheci Dennis em 2006 em Pizza, na primeira conferência da ASPO em que participei. Era sem dúvida o mesmo rapaz da fotografia a preto e branco, até os óculos eram semelhantes. Na recta final da carreira profissional, Dennis estava então voltado para aquilo que os cientistas hoje conhecem como “jogos sérios”, uma técnica de envolvimento de “stakeholders” com jogos tradicionais. De volta de um tabuleiro com pedras de diversas cores e dados, não era difícil de mudar o rumo a uma economia, abandonando os combustíveis fósseis e construindo infraestruturas sustentáveis. Ao partir confidenciei a Dennis: “sem impressa e partidos políticos é tudo mais fácil”. Não me contrariou, mas notou que regimes autoritários não estão necessariamente mais bem preparados para lidar com os desafios do século XXI. Compreendo hoje quão certo estava, o problema não é de regime(s).

Voltei a estar com Dennis em 2012 em Viena, na última conferência internacional da ASPO. Já reformado, apresentou-se sobretudo como observador. Teve no entanto tempo para me explicar porque batemos com os copos uns contra os outros quando brindamos (práctica milenar para mostrar que a bebida não está envenenada). No segundo dia de conferência tivemos a presença de Nebojsa Nakicenovic, cientista do IIASA (International Institute of Applied Systems Analysis) que durante décadas liderou a equipa que preparou os cenários de consumo de combustíveis nos quais o IPCC baseia as suas recomendações. A mensagem de Nakicenovic foi simples: não se preocupem com os limites ao crescimento, há por aí carvão que nunca mais acaba.

Não demorou muito a saber quem tinha razão. Em 2013 a imprensa especializada começou a relatar fortes desafios à extração de carvão na China, país que consome metade de todo o carvão usado mundialmente. Até hoje a China não voltou a extrair tanto carvão num ano como em 2013. Intenções de avançar com um grande programa de energias renováveis e de construir o maior parque nuclear do mundo tardam em sair do papel. Foi finalmente com o abrandar da pandemia COVID-19 que a escassez de carvão se manifestou. De menos de 80 $ por tonelada no início de 2021, o preço do carvão para geração eléctrica chegou aos 100 $ no fim de Maio. E daí em diante foi um “ver se te avias”: 150 $ em Julho, 200 $ em Setembro, e um máximo 270 $ em Novembro. Nunca o preço de um combustível fóssil tinha subido tanto em tão pouco tempo, 330 % em dez meses.

No final de Fevereiro passado Dennis Meadows concedeu uma entrevista a Nate Hagens, um dos amigos que fiz nesses tempos da ASPO. Aos oitenta anos Dennis mantém-se lúcido como sempre, permitindo-se uma reflexão sobre como chegou o mundo à actual dependência nociva dos combustíveis fósseis. Dennis volta-se para o conceito de dissonância cognitiva, a capacidade de pessoas racionais manterem em paralelo ideias antagónicas. Os chamados líderes mundiais compreendem os desafios que a finitude do nosso planeta impõe, mas ao mesmo tempo são incapazes de sair do ciclo vicioso do crescimento. Todos os anos os governos têm como objectivo o crescimento do PIB, as indústrias o crescimento da produção, as empresas o crescimento das vendas e dos lucros.

Corajoso, Nate acaba por trazer à discussão os tais cenários fantástico do IIASA e do IPCC: são produtos de modelos “cegos à energia”, afirma. Os minutos seguintes da entrevista são absolutamente confrangedores, com Dennis Meadows a tentar defender aqueles mais empenhados em sonegar a mensagem dos “Limites ao Crescimento”. A dissonância cognitiva não é afinal só dos tais líderes mundiais. E é talvez esta a grande lacuna de Dennis Meadows: nunca ter enfrentado esses oráculos do clima. De que importam as boas intenções se conduzem as nossas sociedades à ruína?

Estimativa de extração mundial de gás no sec. XXI por Jean Laherrère comparada com os cenários do IIASA/IPCC em 2001. Há mais de vinte anos que geólogos e geofísicos chamam à atenção para a inverosimilhança dos cenários de extração de combustíveis fósseis usados pelo IPCC e os governos nele envolvidos.

Dias depois da entrevista Vladimir Putin ordenou a invasão da Ucrânia. Os problemas com a extracção de combustíveis fósseis ficaram à vista de todos. O preço do carvão voltou às subidas, brevemente ultrapassado o inimaginável valor de 400 $ por tonelada em Março (hoje estás nos 320 $). Aqui na Europa foi o choque há muito anunciado: não há forma de substituir o gás barato que nos chega da Rússia. No próximo inverno vamos ter que escolher entre parar a indústria e mandar milhões para o desemprego ou passar frio em casa. Para além dos sérios problemas que os agricultores enfrentam com os preços dos fertilizantes (um tema para outra altura).

A Europa vai pagar um preço pesado por décadas de políticas energéticas baseadas nesses modelos “cegos à energia”. É preciso reduzir o consumo de carvão por causa da saúde pública? Importa-se mais gás. Têm de se fechar centrais nucleares para reduzir riscos? Importa-se mais gás. Ainda não há solução para o armazenamento sazonal das energias renováveis? Importa-se mais gás. E nada se adianta realmente em relação ao clima, pois no transito de milhares de quilómetros da Rússia até à Europa Ocidental as percas dos gasoductos vão também aumentar o efeito de estufa.

É trágico compreender desta forma que o problema com os combustíveis fósseis é a escassez, não a abundância. É perfeitamente possível que a Europa sobreviva a este período e venha a construir sociedades e economias sustentáveis e prósperas. Mas temos certamente pela frente anos de dificuldades, de uma severidade que talvez só aqueles que viveram a segunda grande guerra conheceram.

Luís Moreira de Sousa

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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