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De emigrante para emigrante

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Porque precisarão essas pessoas de um repelente para emigrantes?
Que tal, na eventualidade de não encontrarem um, começarem a procurar um repelente para idiotas?
Untem-se com ele. Pelo menos servir-lhes-ia de menos embaraço.

 

4 de Janeiro de 2000

A minha dor de emigrante começou muito antes de o avião da TAP Air Portugal ter aterrado no aeroporto de Manchester, no Reino Unido.

Talvez um dos mais sofridos sentimentos de um emigrante seja a saudade, e essa, eu comecei a senti-la no preciso momento em que tive de abraçar a família para um adeus até breve.

As minhas lágrimas misturaram-se com as deles e as palavras pouco percebíveis, foram curtas e abafadas, moldadas pelo sufoco do nosso choro.

Sofri a dor de emigrante no preciso momento em que abracei e beijei os meus pais e lhes tive que dizer adeus.

Quando segurei a minha querida mulher nos meus braços, suavemente a apertei contra o meu peito e sem forças para que eventualmente pudesse expressar as palavras, despedimo-nos num abraço silencioso, longo e triste.

Mas a dor que ainda mais me ficou gravada nos pensamentos, foi a do meu filho mais velho, nessa altura com pouco mais de 7 anos de idade, quando na hora da despedida se retirou com a bola que chutava vezes sem conta, contra a parede da casa, no quintal de trás, mostrando dessa maneira o quão dolorosa estava a ser para ele a despedida, tão dolorosa que não sendo capaz de a enfrentar, encontrou na bola e nas vezes que a chutou contra a parede da casa, uma maneira de lhe escapar. E eu no topo das escadas, a fazer um esforço quase sobre-humano para que ele não notasse na minha voz o quanto eu sofria ao dizer adeus.

“Pronto Miguel, já vou…”

“Tá bem pai… adeus…”

E nem sequer levantou a cabeça, fixando os olhos na bola, mas não a vendo, sei que não a via. Chorava por dentro, e isso, conhecendo-o tão bem como eu o conheço, foi a constatação do quanto ele sofria naquele momento de despedidas.

Essa imagem ficou-me gravada no pensamento e com ela, e por causa dela, não consegui conter as lágrimas que me não largaram os olhos desde Felgueiras até ao aeroporto de Sá-Carneiro e de lá até Manchester, Reino Unido.

Comecei a amar o meu país, o meu povo, a nossa cultura, as nossas qualidades e os nossos defeitos, com muito mais intensidade quando no processo de adaptação a uma nova realidade comecei a dar o verdadeiro valor a tudo isso que sempre me rodeou e eu sempre dei por garantido.

Comecei a sentir um enorme orgulho de ser Português, de pertencer à estirpe dos Heróis do mar (eu que nem sequer sei nadar muito bem) quando pessoas de outros países, que não só o Reino-Unido, me falam tão bem do nosso país, do nosso povo, na maneira amigável que temos em receber outras gentes, outras culturas, da nossa comida, da nossa história como país com mais de 800 anos de existência.

Mas também um enorme orgulho pela aceitação que temos como trabalhadores nos vários países para onde emigramos, pela integração, pela confiança que em nós e no nosso trabalho depositam, pela reputação que com o nosso esforço árduo continuamos a dar ao nosso povo e ao nosso país. Mas também sei que não há regra sem exceção.

Tudo isto é ser emigrante, e tudo isto se pode resumir numa única palavra chamada “Saudade”.

Esta palavra carrega nos ombros, a família, os amigos, as iguarias, os lugares, os cheiros, as cores, os sons, as alegrias e as tristezas. Esta palavra carrega nos ombros a nossa identidade como portugueses que somos.

E por tudo isto e muito mais, venha o Agosto ou qualquer mês do ano e vem o emigrante ao aconchego do lugar que o viu nascer, das pessoas que amamos, dos sítios pelos quais ansiamos um ano inteiro, e não há repelente que nos afaste daquilo a que temos direito, porque também nos pertence.

Vou a caminho de vinte anos em Inglaterra. Comecei como muitos emigrantes. Do nada, quase sem ninguém. Sem saber falar a língua, sem conhecer a cultura, às vezes sem saber para onde me virar.

Mas também como muitos outros emigrantes, herdei a fibra dos Heróis do mar e fui à luta, e trabalhei arduamente, sabendo bem que, muitos dos meus amigos e familiares que nunca emigraram, também eles sempre trabalharam muito para que, apesar das vicissitudes da vida, com a nossa ajuda de emigrantes, e com a deles, os que ficaram por terras lusas, Portugal possa ser a pátria que todos amamos.

Tive a sorte, mas também a coragem de tudo fazer para trazer a minha querida e os meus filhos para junto de mim. E também nessa altura pude ver neles o exemplo de coragem e de luta, de vontade de vencer e seguir em frente, enfrentando todas as dificuldades de quaisquer princípios.

Tive uma enorme admiração pela coragem dos meus filhos (como qualquer filho de emigrante) quando tiveram que se apresentar numa escola onde não conheciam ninguém, onde ninguém falava a língua da qual eles eram capazes nessa altura, de comunicar. Da coragem e determinação da minha querida esposa em se adaptar a uma nova realidade, ela que ama de alma e coração, Portugal.

Todos sofremos, mas fizemo-lo com o apoio incondicional com que juntos enfrentamos o dia-a-dia e as suas dificuldades.

Depois de tanta luta, tanto sofrimento, porque parece assim tão difícil de entender para algumas pessoas, muito poucas apesar de tudo, acredito, que o mês de Agosto seja para nós um mês de alegria, de comunhão e confraternização com aqueles que nos são queridos e por quem passamos o ano todo a morrer de saudades.

Porque precisarão essas pessoas de um repelente para emigrantes? Que tal, na eventualidade de não encontrarem um, começarem a procurar um repelente para idiotas? Untem-se com ele. Pelo menos servir-lhes-ia de menos embaraço.

Ser emigrante é tudo o que vos falei e mais ainda.

É ter sempre um enorme receio de atender o telefone quando a chamada vem de Portugal. É ter medo de notícias que desejaríamos nunca ouvir. Como aquela que recebi numa manhã de segunda feira quando do outro lado da linha a voz sentida e triste da minha cunhada me disse “O teu pai foi-se embora”.

E já lá vão mais de dez anos e eu continuo a ser incapaz de me referir ao assunto sem que as lágrimas me invadam os olhos, e esta mesma pontada no peito continua a ser sentida tal como nesse dia.

“E foi-se embora para onde, senhor António? Por onde anda você?”

Foi tão dolorosa a notícia e, no entanto, eu no fundo sabia que ela viria a qualquer momento, só não estava, como nunca estive, preparado para essa cruel realidade.

“O teu pai foi-se embora…”

E o que eu chorei desde a estação de Byfleet até Woking, e de lá até ao aeroporto de Heathrow.

Como foram longas as horas que eu tive de esperar até apanhar o avião para Portugal.

Sempre de cabeça baixa para que não me vissem as lágrimas que eu não conseguia de maneira nenhuma conter, e em certos momentos a não conseguir controlar um sufoco , uma saudade de não poder nunca mais falar com o meu pai, eu que tinha ainda tanta coisa para lhe dizer.

A minha amiga Milita enviou-me uma mensagem para o telemóvel, desde Sheffield. “Força amigo, os nossos pensamentos estão contigo neste momento difícil.”

E eu que parecia uma criança vulnerável a tanto sofrimento, a tanta dor provocada por perda e saudade, a chorar por vezes em desespero, pela crua realidade do acontecimento.

Também isto é ser emigrante.

Nos meus princípios em Inglaterra foi uma luta para me adaptar a esta nova realidade tão diferente da que eu estava acostumado. A barreira da língua era um desafio que eu sabia que tinha por todos os meios de vencer.

Os inícios são sempre difíceis, especialmente para quem começa quase a partir do ponto zero, por isso, nem havia tempo nem condições para frequentar um colégio onde pudesse aprender a falar inglês, na minha opinião, uma das condições primordiais de qualquer emigrante que assenta vida no país para onde se deslocou. É muito importante saber comunicar com as pessoas, e não menos importante ainda é estar preparado para que elas comuniquem connosco também. Por isso, a minha estratégia foi forçar a conversa com colegas de trabalho, ver e estar atento à televisão, em especial as notícias da BBC, fazer um esforço no sentido de ler jornais, revistas ou livros, e aos poucos a escola da vida foi-me preparando para aquilo que eram as minhas intenções. No entanto, muitas vezes, de maneira natural, por vezes misturo algumas palavras numa conversa em português, inglesas. Não o faço para me exibir, muito embora, tente sempre evitar esse facto. Mas para quem se esforçou tanto para aprender do nada um novo idioma, para quem agora passa mais horas a comunicar em inglês do que em português, não vejo onde esteja a dificuldade de se aceitar com normalidade que, em Inglaterra, na França, na Suíça, na Alemanha, ou qualquer outro país de onde venha o português que emigrou, incomode assim tanto o tal sotaque vagabundo.

As palavras, escritas ou faladas, tem um poder muitíssimo mais forte do que muita gente disso tenha noção. Quem as utiliza, especialmente quem as utiliza publicamente, deveria ter um cuidado redobrado ao pronunciá-las ou ao as escrevê-las.

De qualquer maneira, todos nós temos num ou outro momento da nossa vida, atitudes que mais tarde nos poderão provocar um certo embaraço. Depois do mal feito nada adianta chorar sob o leite derramado, e como se diz em inglês: “Let’s just move on…”

Um forte abraço a todos os emigrantes.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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