Daniela Marques: A CEO do Seixal que dá cartas em Berlim

Quando Daniela Marques, 36 anos, trocou a engenharia civil pela gestão, dificilmente imaginaria que um dia lideraria a Marley Spoon na Europa. Desde que entrou na empresa em 2016, construiu uma trajetória marcada pela ambição, visão estratégica e capacidade de adaptação, qualidades essenciais num setor dinâmico como o dos meal kits. Com passagem pela Malásia e atualmente a viver em Berlim, a portuguesa destaca-se pela sua abordagem destemida à liderança e pelo compromisso com a inovação e a sustentabilidade.
Nesta entrevista ao BOM DIA, Daniela, natural do Seixal, partilha o seu percurso profissional, os desafios de gerir equipas multiculturais diversificadas, os princípios que orientam a sua liderança e as lições que aprendeu ao longo do caminho— conselhos valiosos para quem ambiciona uma carreira internacional.
A sua trajetória na Marley Spoon é impressionante, com diversas funções desde 2016. Como é que essa evolução de cargos aconteceu?
Comecei na Marley Spoon como Logistics Manager para o mercado Europeu, evoluindo na área de Supply Chain, passando por Entrepreneur-in-Residence (para desenvolver um novo produto, a Liloomi), voltando ao meal kit como Head of Operations EU e, finalmente, chegando a CEO da Europa. Penso que foi uma evolução orgânica de cargos, acompanhando o crescimento da empresa desde que era startup até hoje, em que está listada na bolsa de valores de Frankfurt.
Quais foram os fatores que contribuíram para esse percurso?
Há vários fatores que contribuíram para essa evolução e que acredito serem essenciais para qualquer pessoa que queira progredir na sua carreira. Primeiro, tomar responsabilidade pela tua área, quer sejas júnior, sénior, gerindo ou não uma equipa – através da entrega de resultados e de pensar como evoluir a tua área, antes do teu manager pedir. A combinação de proatividade, ambição e resultados leva a que te vejam como competente e alguém em quem podem confiar.
Segundo, ter curiosidade – constante e abrangente. Perceber as diferentes nuances do negócio, fora da tua área, dá-te uma vantagem competitiva, na maneira como geres a tua área e como encontras oportunidades com mais impacto para empresa. Uma maneira prática de expandir esse conhecimento é levantares a mão para fazer parte de projetos fora da tua área de conforto, para te dar exposição a outras áreas e ser reconhecida na empresa por outros. Ganhar visibilidade é importante. As pessoas pensarão no teu nome na próxima oportunidade. Muitas vezes oiço, “não vou fazer mais, porque não me pagam para isso”. Age de forma estratégica: se é para fazer mais do mesmo, não; se é para fazer mais para o teu ganho a médio-longo prazo, pensa nisto como um investimento no teu futuro, será recompensado nesta empresa ou noutra. Esta foi uma das estratégias que tomei desde que me juntei à empresa. Às vezes brinco que se pusesse todos os assuntos em que toquei no meu currículo, ninguém acreditaria.

Finalmente, estar alerta para o que pode ser o teu próximo passo, chegares-te à frente e propores o teu nome mesmo que penses não estar totalmente preparado. Não tenhas medo de levar um não, a informação que retiras desse não também é muito valiosa, bem como os mecanismos que desenvolves para lidar com isso. Na primeira vez que concorri a Head of Operations EU, fui rejeitada. O que fiz com isso? Decidi que queria fazer algo novo dentro da empresa e tive umas das experiências mais gratificantes da minha carreira, como Entrepreneur-in-Residence.
Quais os maiores desafios que enfrentou ao longo dessa trajetória?
Fui constantemente posta em situações cuja probabilidade de sucesso era baixa, devido aos constrangimentos inerentes, e muitas vezes com vozes de pares que se opunham à continuação desses esforços. No entanto, quando avalio a situação e acredito no seu potencial, não desisto, mesmo estando ciente de todas as limitações. Resiliência, ter uma equipa motivada, e o apoio do CEO do grupo foram fundamentais em várias instâncias, para alcançar os resultados que muitos dentro do grupo acharam não ser possível. Penso que é essa a minha imagem de marca.
O que considera ser a chave para liderar uma equipa diversa como a da Marley Spoon?
Ao longo dos anos na Marley Spoon, lidando com equipas muito heterogéneas, percebi que o seu denominador comum é o facto de as pessoas reagirem de forma muito positiva ao sentido de missão e a objetivos ambiciosos. Contudo, para isso acontecer, é preciso ter uma comunicação otimista, clara e constante, bem como transparência e explicação de resultados financeiros, para que cada membro da equipa perceba como o seu trabalho influencia esses resultados e sinta que faz parte do sucesso; finalmente, encorajar as pessoas a arriscar, a experimentar, a desafiar o status quo, mesmo que isso signifique ter “erros”, ou melhor dizendo, oportunidades de aprendizagem, pelo caminho.
Quais as competências que considera serem essenciais para quem quer ter sucesso em cargos de liderança?
Adaptabilidade, individual e das equipas que geres, é, sem dúvida, uma das mais importantes competências para ter sucesso em cargos de liderança. Estamos num mundo que, cada vez mais, se move rapidamente e em direções muitas vezes inesperadas. Para além da pressão para atingir resultados financeiros, o campo de decisão e atuação é constantemente desafiado por fatores macroeconómicos, contexto geopolítico, avanços na tecnologia, crises ambientais e de saúde pública, entre outros. Acredito que a melhor maneira de desenvolver essa capacidade de adaptação é a recorrente exposição a novas e variadas situações, que nos obrigam a estar confortável com o desconhecido e a (re)aprender. Inevitavelmente, agilidade, criatividade e colaboração florescem nessas condições. Uma das coisas em que mais aposto na gestão das minhas equipas é a mobilidade transversal e a promoção interna, para promover essa elasticidade de aprendizagem, enquanto, ao mesmo tempo, são desafiadas a entregar resultados.

Como concilia os desafios de um cargo tão exigente com a sua vida pessoal?
Tendo histórico de depressões na minha família, levou-me a refletir sobre a importância de cuidar da minha saúde mental. Assim, desde cedo na minha carreira, percebi que precisaria de mecanismos para lidar com o esforço e exigências associadas à minha ambição.
A primeira coisa que comecei a fazer foi bloquear tempo no meu calendário para o yoga – não negociável. E já o faço há mais de 10 anos. Isto ajudou-me a criar espaço, mesmo em tempos de muito trabalho, para cuidar de mim. Por outro lado, gosto de fazê-lo ao final do dia, depois do trabalho, para me ajudar a desconectar e processar stress e emoções, antes de ir para casa. Tenho a minha rotina de exercício 4x por semana, alternando entre yoga e exercícios de força, um bom balanço entre relaxamento e fonte de energia para novos desafios. Acredito no poder das rotinas e do exercício físico para nos ajudar a ter controlo do nosso bem-estar – físico e mental –, o que é fundamental para gerir situações complexas, a nível pessoal e profissional.
Para além disso, valorizo tempo de qualidade. No tempo disponível que tenho, dou sempre prioridade a coisas que realmente me enchem a alma: cinema ou atividades culturais que me dão acesso a domínios criativos, caminhadas enquanto oiço podcasts em diversas matérias, boa comida, claro (!), e investir em relações pessoais.
O que a motivou a criar a marca Liloomi e qual a visão que tem para o futuro dela?
Quando aceitei o desafio de Entrepreneur-in-Residence, a Marley Spoon queria expandir para outros verticais para além da comida, tendo por base a subscrição, personalização e sustentabilidade. O meu trabalho inicial foi identificar categorias com potencial, escolher uma e ser responsável por desenvolver o produto, físico e digital, criar a sua marca e lançá-lo no mercado. Quando pesquisei, fiquei fascinada pelas oportunidades e soluções para reduzir plásticos de uso único em rotinas diárias, como a limpeza de casa, higiene pessoal e beleza. Percebi que ainda estamos muitos dependentes de um legado de soluções diluídas nestas rotinas, levando à produção, transporte e venda desnecessária de água e plástico. Embora os consumidores já estejam conscientes da necessidade de mudança, a oferta e adoção de soluções mais responsáveis para o nosso planeta ainda está muito aquém do que é possível atingir. Precisamos de mais esforços coordenados, fabricantes e marcas para dar oportunidade e escala a estas soluções. É preciso interesse e investimento em novos processos e equipamentos para inovar no fabrico de uma nova geração de produtos.

A Liloomi surgiu como resposta a esse desafio, com uma gama de produtos em formato sólido e em pó (com adição de água em casa para formar a solução líquida final), embalados em papel de alto desempenho com barreira contra a humidade. Assim, podemos reutilizar embalagens/recipientes – pensem em todas garrafas de champô, gel de banho, detergentes, que descartamos por mês, por ano, e durante a nossa vida. Começámos com uma pequena gama de produtos, mas acredito que as possibilidades neste espaço são vastas. Depois de lançar a marca, e quando me estava a preparar para validar e evoluir o conceito, a Marley Spoon decidiu voltar a focar-se somente em comida, pelo que este projeto tão pessoal e ambicioso perdeu prioridade e apoio. No entanto, continuo a acreditar no seu potencial e talvez um dia regresse a este projeto e lhe dê uma nova vida.
O que a motivou a escolher a área da engenharia civil e, posteriormente, a transitar para gestão?
Tanto o meu pai como o meu irmão trabalham na área da engenharia civil. Eu adorava matemática e física e, portanto, entre conversas familiares, percebi que havia vários exemplos de pessoas que estudaram e começaram em engenharia civil, mas seguiram carreiras na área da gestão. Não tendo a certeza do que queria fazer do meu futuro, pareceu-me uma escolha razoável.
Estudei no Instituto Superior Técnico, uma escola de engenharia fantástica. A engenharia ajudou-me a saber estruturar ideais, desenvolver o raciocínio analítico, criar uma disciplina de estudo e a perceber a importância do método. Mas quando cheguei ao fim do mestrado integrado, percebi que não queria continuar na área de engenharia civil. Porém, decidi trabalhar durante um ano num gabinete de projetos para ganhar dinheiro e poder pagar um mestrado de Gestão na Nova. Senti que precisava dessa experiência para alargar horizontes. E assim foi. A Nova permitiu-me ver a importância e o desafio de competências não técnicas, cruciais para qualquer carreira, em qualquer área – o poder da comunicação e argumentação, como vender a tua ideia, muitos trabalhos para entregar, de forma rápida e 80% perfeita (a replicar o ambiente de trabalho) e uma exposição a um ambiente internacional, tudo em inglês e com alunos de diferentes países. Não me foi assim tão fácil navegar no mestrado de Gestão. Foi aí que senti que tinha de explorar o mundo e ser exposta a contextos diferentes para me forçar a desenvolver essas competências.
Quais as maiores diferenças culturais que encontrou ao viver e trabalhar na Malásia e na Alemanha?
A minha experiência, tanto em Kuala Lumpur como em Berlim, foi sempre associada a um ambiente multicultural, em ambas as esferas pessoal e profissional, e de empreendedorismo. Penso que uma diferença cultural importante em relação a Portugal é a abertura ao risco, no sentido de experimentar/ explorar coisas novas, e a capacidade de pensar de forma ambiciosa e ver mais possibilidades do que limitações.
Que impacto tiveram as comunidades portuguesas na sua carreira e vida pessoal?
Interessantemente, tanto na Malásia como na Alemanha, acabei sempre por encontrar portugueses no mundo do trabalho. E alguns deles tornaram-se amigos muito próximos, acabando por ser uma “família” fora de Portugal. É através dessas relações – com entendimento falado e não falado, e partilha de valores, costumes e carinho – que tenho mantido a ligação a Portugal.

Que conselhos daria a outros profissionais que estão a começar a sua carreira internacional e/ou a pensar em mudar para outro país?
Vão, comecem, não estejam à espera da oportunidade perfeita. Caso não corra bem, por algum motivo, podem sempre voltar para Portugal. No meu caso, queria ter uma experiência fora de Portugal. De algum modo, a minha estratégia de candidaturas a posições pela Europa não estava a ser bem-sucedida. Então, através de uma colega da Nova que estava na Malásia, acabei a trabalhar numa startup de recrutamento em Kuala Lumpur. A partir daí, saltei para outra empresa, onde comecei a minha carreira na área de operações e tive dois dos melhores anos da minha vida: conheci imensa gente, deixei de ser tão tímida e insegura, viajei imenso por aqueles lados e desenvolvi um espírito aventureiro e de resiliência que, acredito, definiu, em muito, como atualmente encaro a minha vida pessoal e profissional. Vários exemplos na minha vida mostraram-me que o destino que desejamos nem sempre é alcançado pelo caminho mais curto ou previsível.
Texto: Fabiana Bravo