Rodange, 1982
(Poema em versão bilingue português/francês; Poème en version bilingue portugais/français)
Cada vez que desço por aqui
pela rue de la Gendarmerie
mergulho em apneia na minha infância
cruzo-me com essa criança
cabelo de risca ao meio, óculos no nariz
calças em boca de sino, todo janota
casaco bombazine que condiz
cotoveleiras reforçadas e sapato-bota
e no bolso cinco francos a tilintar
e no outro, sem ninguém suspeitar,
em desordem: uma chiclete,
uma carica espalmada a fazer de medalha,
uma figurinha do Davy Crockett
com a sua espingarda já torta
e o seu chapéu, não em palha
mas em pele de raposa morta,
e dois cromos do Paolo Rossi
do álbum 1982 da Panini.
Apesar da mochila quadrada e pesada
e dos livros de capa plastificada
o puto é feliz, mas não sabe
não sabe ainda, um dia saberá
mas nesse dia já não o será.
Mas, por ora, o puto quer lá saber
deixa-o ser feliz e cantarolar
tem muito tempo para aprender
o que lhe queres ensinar
olha como aperta com mão orgulhosa
na algibeira a sua colecção fabulosa
naquela idade, há mais bela felicidade
do que a ingenuidade?
Hoje não chove, é Outono,
e o sol desponta com sono
mas o cheiro da chuva do passado
nestas lajes do passeio molhado
está ainda tão presente em mim
como esta rua está em mim
rua que tantas vezes percorri
a caminho da escola
Esta viagem agora que fazes
é para quê, para fazer as pazes?
Com quem? Com o teu pai, a tua mãe?
Comigo! Contigo? A alma nua! A alma nua? Está bem!
Ok, dá-me a mão, vamos então para a escola
antes chamava-se École des Garçons
mas já não era só de rapazes
agora chama-se Neiwiss, dá outro tom.
Nesse mesmo caminho, mas com outra sacola
eu passava entre a igreja e a casa paroquial
para chegar ao novo centro cultural
e cantar no grupo coral de Santa Cecília
o professor de solfejo que eu detestava
porque estava sempre emburrado ou aéreo
e eu escapava dali moído e abatido
lá fora tinha, entretanto, anoitecido
eu devia regressar a casa passando junto ao cemitério,
as sombras das campas e das cruzes alevantavam-se
tornando a noite medonha e assustadora
os anjos cabisbaixos e em surdina
cobriam com as mãos a face
as árvores altas sibilavam algo à neblina
fantasmagórica àquela hora
eu apressava o passo para que acabasse
o Inverno, que nunca se ia embora.
De manhã eu acordava alegre, mas o sol não
o céu era uma mistura de breu e carvão
faúlhas, ferrugem, clarões e chinfrineiras
eu nunca sabia de qual das três fronteiras
provinham os estrondos ensurdecedores e as centelhas
do ventre cada vez mais oco das terras vermelhas
era pior do que a pior das trovoadas
era como se as nuvens atordoadas
fossem metal e Deus andasse zangado
a martelar ferro numa bigorna…
Matreiro, eu perguntava com sorna:
– Tenho que ir para a escola com o dia neste estado?
Era profundamente injusto
eu barafustava e amuava
como tinha visto o Calimero
a fazer na televisão
mas a minha mãe não ia nesse esmero
e ameaçava com a mão.
Com algum receio, penetro agora, como no purgatório,
no jardim que ainda hoje fica atrás do crematório
entre a minha rua, que ainda me constrange,
a avenida com nome de médico
e a rue Michel Rodange
onde eu passeava alegre e feliz
com a minha mãe nas tardes primaveris
depois íamos mais longe, ela levava-
-me até ao quintal do meu pai
para eu ver coelhos, galinhas, hortaliças
cenouras, batatas e nabiças
e outras maravilhas que o meu pai gabava
e a minha memória agora omite,
passávamos pela casa da madame Schmit
descíamos as escadas e chegávamos
diante de um imenso e verde prado
com gado a pastar folgado.
– Já viste, aqui vai crescer uma laranjeira…
– Uma laranjeira, isso são urtigas!
– Não me digas!
– Laranjeira, com que sol?
– Se te estou a afiançar!
– Não se há-de aguentar…
– Vou fazer-lhe uma estufa para crescer.
– A comuna não deixa!
– Quero lá saber!
No meio do prado um caminho que se ergue
e sobe até à montanha do Titelberg
onde viveram outrora celtas e romanos
eu, como o Davy Crockett no Tennessee
queria desenhar novos mapas-mundo
e descobrir florestas virgens, virgens de mim
mas com um só gesto a minha mãe
acabava com a minha aventura, porém
agarrava-me determinada pelas presilhas
das calças: “Andor! Vamos para casa descascar ervilhas.”
Hoje já não há vacas naquele prado
a casa velha ali ao lado
já não é a casa do Guillaume
o pai do Laurent sem me reconhecer falou-me
a Monique também já não mora ali
o Pascal nunca mais o vi
ali agora há apenas vivendas fora de preço
as casas naquele tempo eram sujas e cinzentas
agora são verdes, rosa-choque, magentas
casas de gente que não conheço
apesar de falarem a minha língua
apesar de falarem as minhas línguas
a minha rua já não é a minha rua
nem a minha aldeia é já a minha aldeia, mirrou
ou cresceu, sei lá, agora é cidade, dizem…
a fonte em que o meu pai lavava o carro secou
o campo de milho que leva ao Rouden Haff já não está lá
já não é o meu campo de milho
nem a estrada cheia de tílias para o Fond de Gras…
O único que não envelheceu
foi o comboio a vapor 1900
ele já era doutros tempos
quando o meu pai e eu
íamos beber Fantas ao café
que é hoje posto dos Correios
a Schaeffers é hoje uma loja belga,
não que ninguém note…
A Corinne e o Eric
já não moram na rue du Clopp
eu pensava que morar ali era chique
o pai da Tânia já não tem o talho
os hipermercados deixaram-no grisalho
a livraria do Yves fechou
já ninguém lê livros, isso acabou.
A minha casa, que é aquela azul quando vais daqui
na esquina com a route de Longwy
já não é a minha casa
foi hotel, casino, restaurante,
salão de baile e hoje é um prédio
cinzento como era o céu da minha rua.
E no baldio que ficava em frente
onde eu brincava à apanhada, à macaca,
às escondidas, aos cobóis e à bola quase sempre
com o Narciso, o Mário, a Chantal, o Roby
o Tó Luís, a Tiziana, o Albano, o Miguel
também apareceu um novo prédio aqui
que esconde o crepúsculo vermelho pastel
que se avistava da janela da minha casa
o sol punha-se do outro lado da fronteira
não sei porque não dormia aqui
transfronteiriço também ele?
como eram belos os pôres do sol
que se viam da minha casa
que já não existe.
JLC24102019
De ma rue je vois des étincelles de moi
Rodange, 1982
Chaque fois que je descends par ici
par la rue de la Gendarmerie
je plonge en apnée dans mon enfance
je tombe sur cet enfant
cheveux avec raie au milieu, lunettes sur le nez
pantalon à pattes d’éléphant, bien comme il faut
veste en velours côtelé assortie
coudières renforcées et bottes
et dans sa poche cinq francs qui résonnent
et dans l’autre, sans que personne ne soupçonne
pêle-mêle: un chewing-gum
une capsule aplatie comme une médaille
une figurine de Davy Crockett
avec son fusil déjà tordu
et son chapeau, pas en paille,
mais en peau de renard
et deux des autocollants de Paolo Rossi
de l’album Panini de 1982.
Malgré le cartable carré et lourd
et les livres aux couvertures plastifiés
le gamin est heureux
il ne sait pas, il ne sait pas encore
un jour il le sauras, mais ce jour-là, il ne le sera plus
mais pour l’instant, le gamin s’en fiche.
Laisse-le être heureux et fredonner
tu as tout le temps de lui enseigner
ce que tu veux lui apprendre
regarde comme il serre fièrement de sa main
enfouie dans la poche sa fabuleuse collection
à cet âge-là, y’a-t-il plus beau bonheur
que la naïveté?
Aujourd’hui, il ne pleut pas, c’est l’automne,
et le soleil se lève atone
mais l’odeur de la pluie de mon passé
sur ces dalles du trottoir mouillé
est toujours aussi présente en moi
comme cette rue est en moi
rue que j’ai si souvent parcourue
sur le chemin de l’école
Ce voyage que tu fais maintenant
c’est pour quoi faire, te réconcilier ?
Avec qui ? Avec ton père, ta mère ?
Avec moi ! Avec toi ? L’âme nue ! L’âme nue ? Bien !
Ok, donne-moi ta main
Allons à l’école !
Avant elle s’appelait l’École des Garçons
mais ce n’était déjà plus que pour les garçons
maintenant ils l’appellent Neiwiss, ça donne un autre ton.
sur ce même chemin, mais avec un autre sac à dos
je passais entre l’église et la maison paroissiale
jusqu’au nouveau centre culturel
pour aller chanter avec la chorale Sainte-Cécile
le professeur de solfège que je détestais
parce qu’il était toujours en colère ou absent
et je m’échappais de là, écrasé et démotivé
dehors, la nuit était tombé
je devais longer le cimetière
les ombres des tombes et des croix s’affolaient
rendant la nuit horrible et effrayante
les anges se courbaient et couvraient
le visage de leurs mains
les grands arbres sifflaient
quelque chose à la brume
fantomatique à cette heure-là
et moi j’accélérais mes pas
pour que l’hiver se termine
lui, qui ne partait jamais.
Le matin, je me réveillai joyeux, mais pas le soleil
le ciel était un mélange de brai et de charbon
de rouille, d’éclairs et de bruits assourdissants
je ne savais jamais de laquelle des trois frontières
provenait le tonnerre tonitruant et les étincelles
du ventre de plus en plus creux des terres rouges
c’était pire que le pire des orages
c’était comme si assommés les nuages
étaient fait en métal et Dieu battait le fer
sur une enclume en colère.
Surnois, je demandais avec émoi:
– Dois-je aller à l’école avec la journée dans cet état ?
C’était profondément injuste
je protestais, je boudais
comme j’avais vu faire Calimero à la télé
mais ma mère ne voulais rien savoir
et me demandais si je voulais une fessée.
Un peu inquiet, je pénètre maintenant,
comme au purgatoire,
dans le jardin qui se trouve toujours
derrière le crématoire
entre ma rue, qui encore me contraint,
l’avenue au nom de médecin
et la rue Michel Rodange
où je me promenais joyeux et heureux
avec ma mère les après-midis de printemps
parfois on poussais plus loin
jusqu’au jardin de mon père
pour que je vois les poulets, les lapins
les carottes, les pommes de terre, les navets
et d’autres merveilles dont mon père se vantait
mais que ma mémoire oublie aujourd’hui
nous passions devant la maison de Madame Schmit
on descendait les escaliers et on était arrivé
devant une immense prairie verdoyante
avec des vaches qui broutaient.
– Tu as vu, un oranger va pousser ici….
– Un oranger, ce sont des orties !
– Pas du tout !
– Un oranger, avec ce soleil ?
– Si je te le dis !
– Il ne tiendra pas …
– Je vais lui faire une serre !
– La commune ne le laissera pas faire !
– Je m’en fous !
Au milieu de la prairie, un sentier qui monte
jusqu’à la montagne dite Titelbierg
où jadis vivaient des Celtes et des Romains
moi, comme Davy Crockett au Tennessee
je voulais dessiner de nouvelles mappes-monde
et découvrir ces forêts vierges, vierges de moi
mais d’un seul geste, ma mère
mettait fin à mon aventure dans les bois
elle m’attrapait par les bretelles du pantalon
et ordonnait : « Allez, houste, à la maison,
il faut éplucher les petits pois !”
Aujourd’hui, dans cette prairie
les vaches n’y viennent plus paître
la vieille maison d’à côté
n’est plus celle de Guillaume.
le père de Laurent m’a dit bonjour sans me reconnaître
Monique n’y vit plus non plus
Pascal je ne l’a jamais revu
il n’y a plus que des maisons hors de prix
à l’époque, les maisons étaient sales et grises
maintenant elles sont vertes, rose-bonbon, lilas
ce sont des maisons de gens que je ne connais pas
même s’ils parlent ma langue
même s’ils parlent mes langues
ma rue n’est plus ma rue
même mon village n’est plus mon village
il a rétrécit, ou grandi, je ne sais pas
c’est une ville maintenant, disent-ils
la fontaine où mon père lavait sa voiture s’est asséchée
le champ de maïs qui mène au Rouden Haff n’est plus là
ce n’est plus mon champ de maïs
ni la route pleine de tilleuls jusqu’au Fond de Gras
le seul qui n’a pas vieilli
c’est le train à vapeur 1900
il était déjà vieux
quand mon père et moi
allions boire des Fantas
au café qui est maintenant un bureau de Poste
Schaeffers est maintenant un magasin belge,
ce qui ne semble déranger personne
Corinne et Eric
ne vivent plus rue du Clopp
je pensais que c’était bien d’y vivre
le père de Tania n’a plus sa boucherie
les hypermarchés l’ont mené à bout
Yves a fermé sa librairie
plus personne ne lit de livres de toute façon.
Ma maison, c’est la bleue quand tu vas d’ici
au coin de la route de Longwy
mais ce n’est plus ma maison
ce fut un hôtel, un casino, un restaurant
une salle de bal et aujourd’hui c’est un bâtiment
gris comme était le ciel de ma rue
et sur le terrain vague juste devant
où je jouais la plupart du temps
à chat, à la marelle, à cache-cache
aux cow-boys et au ballon
avec Narciso, Mario, Chantal, Roby
Tó Luís, Tiziana, Albano et Miguel
un nouvelle maison, ici aussi
qui cache le crépuscule rouge pastel
que l’on pouvait apercevoir de ma maison
le soleil se couchait de l’autre côté de la frontière
je ne sais pas pourquoi il ne dormait pas ici
frontalier lui aussi ?
Comme ils étaient beaux les couchers de soleil
que l’on pouvait voir de de ma maison
qui n’existe plus.
JLC24102019