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Carta Aberta às Doce

Queridas Doce

Graças à feliz escolha de programação para o Festival do Cinema Português no Luxemburgo em 2021, tive o privilégio de poder ver recentemente o Bem Bom, o filme português mais visto de 2021 até agora.

E o sentimento dominante, desde que vi o filme, é pensar como é que é possível ter sido necessário passar tanto tempo até chegarmos a esta homenagem, num formato nobre, com a autoridade própria de uma longa-metragem. É de uma homenagem se trata – a transbordar de qualidade, de sensibilidade. É Demais.

Bem Bom a realizadora Patrícia Sequeira  e a sua equipa terem mobilizado o seu talento para vos fazer justiça. Um vasto talento de tantos profissionais, a começar por quatro atrizes fantásticas. A Bárbara Branco, a Lia Carvalho, a Carolina Carvalho e a Ana Marta Ferreira, que vos encarnaram de maneira tão convincente. Bem Bom o filme fazer justiça não só ao vosso profissionalismo no campo musical e do show business, mas justiça também ao gigantesco papel que vocês tiveram na libertação da sociedade portuguesa daquela época – ainda tão bafienta, como bem me lembro na minha infância. Um papel desempenhado contra um fundo de pesada herança retrógrada, incluindo os intelectuais de serviço. Alguns poeirentos eles mesmos, talvez sem se aperceberem formados e formatados no seu subconsciente por quase 50 anos de ditadura provinciana, mesquinha e patriarcal. ´

A Intelligentsia da altura sentia-se talvez em posição mais cómoda colocando-se numa postura de desdém em relação a um fenómeno com profunda aderência popular como as Doce. Um snobismo cultural frequente, que confunde a sua própria arrogância com uma imaginária superioridade. Será essa a razão pela qual vocês sentem – justificadamente – que vos tentaram “apagar” da história da música portuguesa dos anos 80? Por mim, e penso que falo por muita gente, espero que o filme, a série e o documentário da RTP, Bem Bom – Realidade e Ficção, marquem uma viragem nessa situação de apagamento. O documentário também é a não perder.

Vocês, Doce, passaram o teste do tempo com notas de Quadro de Honra. Ainda em anos recentes estive em Portugal em casamentos de gente que ainda não era nascida ou apenas gatinhava nos anos 80, e quando o disc-jockey quis encher a pista de dança, tocar o Amanhã de Manhã foi o método escolhido. De efeito imediato. Não só a pista se encheu, mas toda a gente começou a cantar a letra – mais de 30 anos depois! É um pouco um equivalente português do mundialmente conhecido YMCA dos Village People, um êxito utilizado com a mesma intenção em pistas de dança. É Demais.

Vocês bem sabem que foram a primeira grande festa a cores no Portugal cinzento desse tempo. Bem Bom o filme ter por trás uma equipa com uma enorme dose de talento feminino, que quis e soube mostrar um ângulo do ponto de vista da condição feminina, como comentou a própria realizadora no documentário da RTP.

E que grandes doses de Café Com Sal vos serviram… Nesse triste registo, um dos maiores méritos do filme é a reposição da verdade, a desmontagem do pérfido boato de difamação da Laura Diogo. Como o filme bem permite perceber, um boato nascido da malvadez invejosa, da misoginia e do racismo. Um boato ecoando na caixa de ressonância das cabeças de quase toda uma sociedade sexualmente reprimida e frustrada daqueles tempos, uma sociedade com dificuldade em lidar com mulheres livres e com sucesso. Desculpa, Laura. Portugal inteiro deve-te um monumental pedido de desculpas. Não sei em que formato, ou formulado por quais entidades – mas deve. O filme demonstra-o bem. Que sirva para reflexão daqueles e daquelas que estarão em posição de um dia o fazer.

Enfim, obrigado. Obrigado por tudo. Pelo profissionalismo na interpretação daquelas intemporais e geniais canções do Tozé Brito que ficaram na memória e na verdadeira cultura de Portugal. Pela ousadia de terem cantado aquelas letras que ainda hoje são arrojadas, mesmo não sendo letras escritas por mulheres, muitas delas fantasias de homem autor. Obrigado pela vossa boa disposição, em palco e fora dele. Pela explosão de cor e alegria naquele Portugal de 1980, ainda a acordar do torpor da ditadura e a respirar fundo depois dos solavancos do PREC. E ainda obrigado, pela generosidade e candura dos vossos testemunhos no documentário.

Para terminar nada melhor do que as palavras magistrais da Lena Coelho no documentário, sintetizando as Doce: “O sonho que as pessoas nem a dormir conseguiam ter”.

Bem Bom.

Gabriel Martins

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