Onze horas e cinquenta e nove minutos.
O sineiro, resgatando o fôlego perdido na subida apressada, toma as rédeas dos três velhos pregoeiros. Suspira demoradamente. Um breve olhar circular confirma a robustez das amarras, deixando o corpo antecipar os gestos que darão timbre à festa. Depois, o vazio; um silêncio ocre trespassado pelo ranger das cordas que se ajustam aos dedos inquietos e determinados. À sua esquerda baloiça — expectante e ainda muda — a Sineta. Uma epígrafe preenche a quase totalidade da altura deste pequeno sino:
“Amélia Cecília Jardim Santos
nasceu em 2 de Março de 1897
casou em 12 de Junho de 1918
faleceu em 3 de Janeiro de 1919
homenagem de seu marido
Victorino Santos”.
Não existem fronteiras para uma paixão, e esta, prematuramente amordaçada pela pneumónica, deixou-se encarcerar no metal por fidelidade às juras eternas.
Na sua cordura insular, os São-jorgenses haviam traduzido o linguajar festivo dos sinos com a sequência melódica de um gracejo: “carne e vinho e pão”. Uma síntese à medida das necessidades quotidianas para um povo avezado a transcendê-las. A torre reclama o manto do tempo. Sob a fria serenidade da cúpula setecentista, os sentidos despertam da absoluta inconsistência dos dias. Bruscamente, o esvoaçar clamoroso de um bando de pombos — prenúncio da primeira badalada. Ressoa o Santíssimo pelo vale da freguesia. Ao longe, no Pico do Fogo, estoura em soluços o sinal. Nova badalada. O colosso vacila e tange na complacência dominante da sua gravidade sonora. “Pão… Pão…” À terceira badalada preambular adensa-se o contraponto de dois mundos: os foguetes do povo retorquem, sem hesitação, ao altivo sino de Dona Maria II. Uma pausa. Esmorecem os ecos em expectativa impaciente. Ouve-se o hino da banda filarmónica — que comece o duelo! Rebimba, aguda, a Sineta, logo pontuada pelo trovejar do vetusto São Jorge e do sino maior. “Carne e vinho e pão! Carne e vinho e pão! Carne e vinho e pão!” Insiste o sineiro com novo ataque, espargindo o chão com a bênção da fadiga enquanto as nuvens brancas de pólvora preenchem estrepitosamente o vácuo dos céus (alheios ao frenesim das gentes nas ruas engalanadas). Novamente a estrídula Sineta — obstinada — em louvor plangente que refreia a voracidade dos sinos grandes e relembra um fim maior. Sim, os sinos também choram. O amor de Cecília e Victorino vive pelas mãos de quem não lhes conheceu o rosto, reverberando a cada colisão metálica como salmo esvaído em mundo.
No piso pétreo da torre da matriz desenham-se, frenéticos, os passos sôfregos do sineiro (em transe corpóreo). Na sua intrincada cadência, o repique solene de São Jorge eleva o artesão do som à condição de sumo-sacerdote da liturgia da memória, ungido pelo sal da História. E muitos foram os arrebatados pelo êxtase a alcançar a consagração das lendas, como a do sineiro Chícharo, já vergado por provecta idade, subindo de joelhos os íngremes degraus da torre para se entregar ao bamboleio sagrado dos sinos. Persistem, em exercício regular, apenas dois virtuosos deste culto. Estes derradeiros sineiros tradicionais da Madeira são guardiões de um património imaterial ímpar. Assumindo o papel de intérpretes das dezenas de toques centenários da matriz de São Jorge, dão de si o que falta ao bronze: ali, coroados pela mais bela abóbada de pedra da ilha, executam a dança cósmica que empresta voz à resiliência e desperta o latejo do Universo.
Calam-se os morteiros, rumoreja a turba. É hora de terminar. Uma badalada orgulhosa estrondeia como passo final em escadaria vencida. “Pão!” — Perdura a toada, cada vez mais ténue e distante, até alcançar a glória dos sussurros. Por fim, o silêncio… De novo o vazio. Um divino e soberano nada.
É este o momento que une os séculos.
João Márcio Matos