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Caravaggio e o abismo

“Pois tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era estrangeiro e acolhestes-me, estava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava na prisão e fostes ter comigo.”

Mateus 25: 35-36

 

No ano de 1606 chegava a Nápoles o pintor Michelangelo Merisi, conhecido então (e em nosso tempo) pelo nome da sua cidade natal: Caravaggio. Havia fugido à justiça de Roma, condenado a ser decapitado como assassino de Ranuccio Tomassoni, um notório delinquente, não muito diferente dos personagens de rua que Merisi usava como modelos de santos e profetas. Não havia qualquer equívoco – o génio, o mestre da luz, era, de facto, um homicida. O confronto feroz nas vielas da Cidade Eterna (por uma mulher, diziam alguns, ou dívidas de jogo, asseveravam outros), não havia produzido qualquer atenuante que resgatasse a já questionável reputação do artista de uma derradeira ignomínia. Aliás, segundo os relatos trazidos a juízo, a dúvida maior em todo o processo terá sido a de saber se a morte fora provocada acidentalmente, em função da castração infligida por Caravaggio, ou se este procedimento de amputação testicular mais não seria que uma intencional, cruel e artística forma de provocar o óbito por hemorragia. Certo é que Tomassoni morreu.

Caravaggio nunca fora nenhum santo. Intercalava a pintura de obras religiosas para igrejas e basílicas com o ocasional pernoitamento na prisão, onde curava as habituais bebedeiras e dava repouso às mazelas da última escaramuça. Mas havia algo novo nesta última desventura, mais que remorso. A fatalidade do erro havia-lhe roubado a segurança. Assumiu como cumprida a pena a que fora condenado. Em verdade, até a sua morte em 1610, permanecerá obcecado pela representação de cenas bíblicas de decapitação, utilizando a sua própria cabeça como protótipo para a de Holofernes, Golias e São João Baptista.

É como farrapo humano que Caravaggio chega a Nápoles. Um Caim marcado pela calamidade da queda. Aí, no rescaldo da brutalidade do seu crime, executa uma das obras primas da arte ocidental e, talvez, o mais belo acto de contrição que uma culpa mereceu: “Sette opere della Misericordia”. Comissionada para a Igreja de Pio Monte della Misericordia, a encomenda consistia num conjunto de telas retratando as sete obras corporais de misericórdia: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os despojados, acolher os sem-abrigo, assistir os enfermos, resgatar os cativos e enterrar os mortos. É, a par das bem-aventuranças, das virtudes teologais e do catálogo paralelo dos actos espirituais de misericórdia, uma sistematização típica do Cristianismo, que joga com a simplicidade e a sacralidade dos números para realçar a importância de certas passagens dos Evangelhos. À volta destas premissas do bem-fazer nascem associações caritativas que procuram pô-las em prática, como a Irmandade de Pio Monte della Misericordia, que arrisca empregar o transgressor Caravaggio para abrilhantar a igreja do hospital onde tinha a sua sede. Contrariando a expectativa dos patronos, Caravaggio decide realizar uma composição que incluía todos os actos de misericórdia numa só tela, criando o monumental quadro que ainda hoje preside ao altar-mor do templo napolitano.

A obra, em si, merece o silêncio que é devido à grandiosidade. Não arriscarei contornar com a debilidade do verbo aquilo que o talento de Caravaggio fixou na superfície ocre em ímpetos de claridade e redenção. Importa somente explicar porque é que, nos derradeiros dias deste ano de todos os males, me ocorre esconjurar o confinamento a que me remeteu 2020 escrevendo sobre um assassino e a sua obscura pintura para uma desconhecida igreja em Nápoles. Bem, para ser franco, nada me pareceu mais apropriado que falar da coragem que só os tombados conhecem. Nem o mais completo infortúnio mata a capacidade de superação. Existirá, para cada uma das misérias humanas, uma redentora força oposta, uma misericórdia, na radicalidade da própria etimologia da palavra. Miseratio cordis – totalidade de coração. Uma inteireza que vive do confronto com o precipício, que encontra na nossa insuficiência espaço para existir, como bem ilustra o tenebrismo, a incomparável técnica de Caravaggio, esse conhecedor dos contrastes, que recupera na evidência da escuridão o elemento fundamental para que a luz mais pequena possa resplandecer.

O desafio será este: ver no intransponível abismo a possibilidade da ponte; considerar o Mundo Novo que nos espera no outro lado do fosso. E, quando o desalento se sobrepor à confiança, acreditar na Humanidade – saber que continua a haver quem alimente os famintos, dê de beber a quem tem sede, vista os despidos, acolha os errantes, cuide dos doentes, chore os nossos mortos e, assim, nos resgate a todos.

João Márcio de Matos

 

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