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“Burnout” e a forma de o combater nas empresas

Estamos a viver uma época complexa, pelo menos aos olhos de quem, como eu, já viveu o suficiente para poder comparar a vida pessoal e profissional dos dias que correm no pós-pandemia, com a que se vivia “ontem”,  há umas décadas atrás.

A de “ontem” era uma vida certinha, pacata, numa comunidade envolvente estável. Era um emprego certinho e garantido para toda a vida sempre na mesma empresa, onde por vezes até os nossos pais já tinham, eles próprios, trabalhado a vida inteira. Era a família a viver por perto, mesmo depois dos filhos ganharem a sua independência física e financeira, e portanto passarem eles próprios a ser parte da perpetuação desse modelo de mundo “ideal”, estável, pacato, previsível, geração após geração.

A de “hoje” é constituída só por incertezas, por mudanças permanentes como sendo a paradoxal constante única, com nada a permanecer imutável, garantido ou previsível.

Todos nós trazemos dentro de nós um conjunto de princípios, comportamentos, virtudes ou valores que nos começaram a ser transmitidos por via de regra na família primeiro, mas depois também em maior ou menor grau na sociedade, à medida em que saíamos de casa (escola, igreja, círculos de amigos, empresa, serviço militar, associações e grupos desportivos, juventudes partidárias…). 

Esse conjunto de valores são aqueles de que nos socorremos ao buscar referências comportamentais que nos ajudem a enfrentar ao longo da vida as necessidades mais elementares e  básicas :

– sobrevivência física 
– segurança emocional
– auto-estima
– crescimento e desenvolvimento pessoal
– busca de um propósito ou sentido de vida (e para a vida)
– marcar uma diferença pessoal
– ser útil a outrem, ao planeta e a si próprio 

Cada indivíduo acaba por seguir o seu próprio caminho na busca da felicidade plena, da satisfação equilibrada de todas as mencionadas necessidades básicas, dando ênfase a este ou aquele valor, consoante a sua escala pessoal na importância que dá a cada uma dessas suas necessidades básicas. 

Obviamente que em cada momento histórico na vida da Humanidade se cristalizam valores que podem variar (e variam, brutalmente) de época para época, razão pela qual eu pessoalmente considero absolutamente ridículo pedir hoje desculpa por aquilo que foi feito há 100, 300 ou 500 anos…. Nem aqueles que, à luz dos valores civilizacionais atuais, cometeram os sacrilégios, estão vivos, nem os que os sofreram na carne estão vivos também. Pedir perdão à distância de 15, 20 ou mais gerações é uma idiotice chapada, na minha modesta opinião, porque aquilo que foi feito na altura, e que choca com as crenças, valores e princípios da época em que hoje vivemos, a Era do Conhecimento, era perfeitamente normal então.

Há hoje um consenso generalizado, pelo menos na sociedade com as raízes civilizacionais e culturais que herdámos dos nossos antepassados europeus, que nos indica que, para poder viver e trabalhar na época atual, enquanto indivíduos, devemos respeitar um conjunto de valores / princípios / conhecimentos, que sugiro a seguir:

Na satisfação de necessidades básicas 

– ser digno de confiança (para nos próprios)
– honestidade 
– integridade
– assumir compromissos
– abnegação/ altruísmo 
– equanimidade 

No relacionamento com os outros

– generosidade
– colaboração 
– humildade
– franqueza
– tolerância 

Partilhadas em grupo

– assumir responsabilidades, não culpar outros
– planificar e implementar com prudência e inteligência 
– ser positivo e ver mais além do horizonte imediato
– equilibrar a vida pessoal com as necessidades do trabalho
– apoiar quem toma riscos
– apoiar a comunidade

Como já terão reparado são precisamente os comportamentos que aparecem no “Partilhados em grupo” aqueles em que, cá em Portugal, como sociedade, teríamos certamente a pior nota possível…. Mas isso é tema para outra crónica, porque o tema de hoje é tratar de partilhar aquele que na minha opinião é o melhor caminho para combater o terrível “burnout” nas empresas que, aparentemente, neste pós-pandemia difuso em termos de relações laborais, está a afetar exponencialmente um crescente número de colaboradores.

Quando um grupo de indivíduos se reúne numa empresa, é absolutamente vital que todos os valores individuais provenientes das diferentes prioridades na satisfação das necessidades básicas individuais se alinhem (“sincronizem”) harmoniosamente com os dos outros colegas, com os que emanem da cultura empresarial dominante, bem como com aqueles que são, na época da História da Humanidade em que vivemos, socialmente e universalmente reconhecidos e aceites como o tipo de comportamento razoável e aceitável.

Não há qualquer dúvida hoje em dia de que quanto maior for o alinhamento existente entre os valores pessoais de cada colaborador, e os valores da empresa, maior é o êxito da companhia, maior é a atenção dada à satisfação do cliente, e maior é a dedicação ao serviço comunitário, ou responsabilidade social como se designa hoje, algo que virou moda por ser politicamente correto, e não porque na maioria das empresas se sinta ou viva genuinamente esse valor.

As empresas em que esse alinhamento não se dá (o Estado é o paradigma do que afirmo), caracterizam-se por ser exímias a “olhar para o seu próprio umbigo”, por ser burocráticas, e por gerar um enorme “stress” em quem lá trabalha, o que conduz ao “burnout” invariavelmente !

Quando cheguei a Portugal em 2003, foi-me confiada para liderar uma empresa que estava comatosa, e não só no aspeto financeiro. Com a experiência de liderança de equipas de alto rendimento reunida em mercados tão díspares quanto o México, a Suíça, a Venezuela, o Brasil e a Espanha, rapidamente cheguei à conclusão que ou promovia a transformação cultural da empresa, e conseguia que passasse a ser uma empresa modelar em termos de alinhamento de valores pessoais e organizacionais, ou atraiçoaria a confiança depositada em mim, porque nunca conseguiria levantar a empresa.

Hoje, nos chamados regimes de trabalho híbridos, em que as pessoas nunca se reunem todas ao mesmo tempo sob o mesmo teto (pior ainda nos regimes de teletrabalho puros e duros), forjar uma cultura de empresa e alinhar valores e comportamentos entre todos os stakeholders é possivelmente um oxímoro organizacional.

Um dos exercícios mais importantes que pessoalmente liderei e que, numa empresa que tinha na altura já muito perto de 400 colaboradores, todos sem exceção envolvidos ao longo de vários meses no processo, e que foi um desafio extraordinariamente exigente (pelo tempo investido, adicional ao tempo necessário para “tocar o barco”), foi o de definir para o coletivo corporativo aqueles 5 valores que se alinhassem intimamente com os nossos próprios valores pessoais, pelos quais estávamos dispostos coletivamente a lutar, e pelos quais estávamos dispostos a “correr a milha extra”. 

Foram eles

– trabalho em equipa
– honestidade
– excelência
– compromisso
– rigor

Como é obvio houve colaboradores que não gostaram do resultado final, que não se identificavam com o que isso implicava em termos comportamentais a partir daí, e que tiveram que sair (muitos voluntariamente, outros convidados). Mas os que ficaram, e os que posteriormente iam sendo integrados (levávamos muito a sério o processo de recrutamento e seleção, já fortemente marcado pelo que se exigiria das novas aquisições de talento que se quisessem incorporar ao nosso “Oceano Azul”, e o chamado processo de “indução” dos novos colaboradores), rapidamente se integravam no “ecossistema”. E a partir daí, na sua esmagadora maioria, deixavam de trabalhar e passavam a divertir-se (“Escolhe um trabalho de que gostes, e não terás de trabalhar um só dia na tua vida” – Confucio).

Deste trabalho coletivo resultou um volume (que mandámos editar), que designámos como “O Nosso Grande Livro dos Valores”, em que reunimos os testemunhos e contributos individuais mais marcantes de mais ou menos um quarto de todos os colaboradores. Este livro era leitura e análise obrigatória de todos os novos colegas que entravam na empresa, e que depois de passar pela área de Gestão de Talento, que fazia a “indução” inicial, e de terem a oportunidade de falar com aqueles colegas que tinham um testemunho escrito publicado no livro, estavam a 100 0/0 embebidos na cultura da empresa, fortemente motivados, e sem qualquer propensão para mergulhar em “burnout”. 

Assumo que hoje em dia seja incomparavelmente mais difícil tratar de fazer um exercício similar, mas é possível sim. As pessoas em regime híbrido ou teletrabalho perderam o vínculo emocional aos colegas (e até às chefias…), e esse é, na minha modesta opinião de quem geriu equipas de alto rendimento ao longo de mais de 40 anos em várias geografias e culturas, a principal razão para que, segundo um estudo da revista MundoRH, mais de 80 0/0 dos colaboradores se sintam esgotados emocionalmente, e o “burnout” tenha passado a ser considerado uma doença profissional em 2022. 

A solução passa por buscar fórmulas criativas e inovadoras de propiciar que as pessoas trabalhem coletivamente em projetos que estabeleçam vínculos emocionais entre equipas a vários níveis na empresa, coordenar os resultados entre as várias equipas, e depois fazer um evento grandioso coletivo presencial de apresentação daquilo que passará a ser o ADN da empresa daí para a frente. A quem já o vi fazer no setor segurador, pelo menos uma parte daquilo que é o meu modelo pessoal de formação de uma cultura de empresa coesa, “vacinada”, e portanto imune ao “burnout”, foi curiosamente uma empresa de capital…chinês! Em Portugal as normativas de Xi Jinping para o confinamento massivo não se aplicam!

Empresa que não dê importância a este aspeto vital para a formação de uma cultura e de uma mística de empresa vai ter muitos problemas no futuro, sobretudo na retenção de talento. Hoje em dia aqueles que estão em teletrabalho podem mudar de emprego, exagerando, apenas com um click dado à mesa da sala de jantar… Sem avisar, quando a empresa se dá conta, o colaborador poderá já estar comprometido com outro empregador, por vezes por poucas dezenas ou centenas de euros de diferença salarial. Bye bye lealdade, compromisso, “camisola bem vestida”… Ou então não, fazendo o que deve ser feito para forjar, neste entorno complexo, uma coesão cultural corporativa forte.

José António de Sousa

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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