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Breve resumo histórico da sexualidade na arte e na literatura

MUNDO ANTIGO

A sexualidade humana está intimamente ligada à perpetuação da espécie e é, portanto, indissociável da própria História da Humanidade.

Na Pré-História a sexualidade estava muito conotada com a maternidade. Uma das primeiras representações de um corpo de mulher sexualizado é uma pequena estatueta, de 11 cm de altura, em pedra calcária de uma mulher com seios opulentos e barriga enorme, a chamada Vénus de Willendorf. Os arqueólogos pensam que a estatueta tem entre 25 e 30 mil anos e que esta imagem era adorada como a deusa da fertilidade.

O sexo só começa a ser dissociado da maternidade quando aparecem as primeiras civilizações, que começam a colocar as necessidades, os desejos, as vontades, os sonhos do ser humano no centro das preocupações. São exemplos disso os antigos Gregos e Romanos. Ambos estes povos evocavam abertamente e sem tabus a sexualidade na sua arte e na sua literatura, já que o sexo estava presente em quase todos os aspetos da vida social, bem como religiosa. Basta pensar na sua mitologia, em que os deuses tinham uma vida sexual desenfreada tanto entres eles como com os humanos. O sexo estava até presente na vida politica, já que muitos casamentos serviam para criar alianças ou citemos a mítica a Guerra de Tróia, despoletada pelo rapto da mulher de um rei pelo seu amante.

Mas há mais exemplos: Tanto na Grécia como na Roma antigas alguns ritos religiosos exigiam a presença de rapazes ou de raparigas virgens, que deviam perder ali a sua virgindade, oferecida em sinal de pureza aos deuses. As Bacanais, festas religiosas dedicadas a Baco, deus romano do Vinho, acabavam habitualmente em grandes orgias, com todos os intervenientes bêbados. Também era muito comum entre estes povos os esposos terem simultaneamente amantes, masculinos ou femininos, o que era socialmente aceite. Ou seja, a ideia que circula hoje que a poligamia ou o poliamor é algo ligado à religião muçulmana está errada, já que o Islão nasce apenas no século VII depois de Cristo.

Essa liberdade sexual vê-se também na poesia e na literatura erótica grega e romana em que são normais e socialmente aceites não só a heterossexualidade, mas também a homossexualidade, a pedofilia, que não era considerada um desvio, o incesto entre irmãos, pais e filhos, mas também as orgias ou os actos de zoofilia, que também vêm representados na escultura, na cerâmica, em murais. Essas lendas e mitos, contados em verso, têm sempre um ensinamento ou uma moralidade. Lembremos a este propósito lendas como  Édipo-Rei, que mata o pai e casa com a mãe, ou a história em que Zeus se transforma em touro para copular com Europa, e dessa relação nasce o Minotauro; ou ainda o mito de Perseus e Andrómeda, contado pelo historiador Heródoto, onde aparece o primeiro exemplo de bondage erótico.

Um dos belos exemplos da literatura erótica desse tempo é o livro “A Arte de Amar” do poeta romano Ovídio, que viveu em meados do ano zero da nossa era.

Também no Extremo Oriente havia antes de Cristo manuais com conselhos amorosos e sexuais, imagens com gravuras e desenhos de posições sexuais visando favorecer o prazer ou a reprodução, ou receitas para evitar a ejaculação precoce ou despertar o desejo sexual. Isto, embora, na China particularmente, o Confucionismo a partir do primeiro século da nossa era viesse fazer imperar um rigor moral e sexual até ao século XVII e a partir daí, regras sociais ainda mais apertadas com a Dinastia Manchu.

Mais ou menos na mesma época, em torno do ano zero, na Índia, a tradição oral perpetuava há muito uma recolha de textos especializados nas artes amorosas e sexuais, que foram passados a escrito no século II da nossa era, o famoso “Kamasutra”.

IDADE MÉDIA

Também a época de ouro do Islão foi rica em literatura erótica, citemos apenas dois exemplos, o “Breviário Árabe do Amor”, com receitas para dar pujança e desejo sexual tanto ao homem como à mulher, e “As 1001 Noites”, que incluem contos como Aladim e a Lâmpada Mágica, Ali Babá e os 40 Ladrões ou Sinbad O Marinheiro, que todos conhecemos, mas apenas na sua versão censurada, ou seja, despojada das cenas sexuais.

Ao mesmo tempo que o Islão vivia o seu apogeu liberal e artístico, a Europa vivia mergulhada na Idade Média e numa moralidade rigorosa imposta pela Igreja de Roma, que reduzia o sexo ao acto da reprodução. E condenava qualquer desvio, que podia ir da simples contrição, à punição pública, tortura ou até mesmo à condenação à morte. No entanto, até nessa época proliferaram os contos eróticos na Europa, que misturavam o obsceno ao humorístico. O mais famoso é uma recolha de 100 contos, o “Décameron”, escrito pelo florentino Boccaccio, no século XIV.

No Japão do século XI é publicado aquele que é considerado o primeiro romance da História, um romance com uma estrutura moderna, “Genji Monogatari”, ou seja, “O Conto de Genji”, escrito por uma dama da Corte do imperador Heian, Murasaki Shikibu.

IDADE MODERNA

Mas a época de ouro da literatura erótica vão ser, sem dúvida, os séculos XVIII e XIX com histórias, contos e romances que relatavam os actos de libertinagem de toda a sociedade, da corte à nobreza, do povo ao clero.

Um dos autores mais conhecidos deste género literário do século XVIII é o francês Pierre Choderlos de Laclos, com o seu livro erótico “Ligações Perigosas”, mas também o Marquês de Sade, que escreveu “Justina ou Os Infortúnios da Virtude” ou o obsceno “Os 120 Dias de Sodoma”. As práticas do Marquês de Sade, que gostava de infligir dor aos seus parceiros e parceiras sexuais, deram origem a uma nova palavra: o sadismo. Em Portugal, temos na mesma época o nosso famoso poeta nacional Manuel Maria Barbosa du Bocage. Em Itália, são publicadas por essa altura as Memórias de Giacomo Casanova. Um pouco mais tarde, em Espanha, é publicado “Don Juan Tenório”, que ficou conhecido simplesmente por Don Juan, uma obra escrita por José Zorillla, em 1844. Foi também já no século XIX que o jornalista austríaco Leopold von Sacher-Masoch escreveu sobre o prazer sexual que se retira da dor, o que ficou conhecido como masoquismo.

Voltemos novamente ao Japão, porque é precisamente quando a China se fecha, no século XVIII, que aparecem no Japão as estampas japonesas de teor sexual e “os geishas”, que começam, como o nome indica, por ser homens que animam os salões de chá, como se fossem bobos da corte ou aquecedores de sala, como se diria hoje no meio televisivo. Mas pouco depois esse trabalho passa a ser feito exclusivamente por mulheres, que já não servem apenas chá mas se tornam damas de companhia e profissionais do sexo com estatuto reconhecido pelo Estado.

Nos séculos XVIII e XIX, na pintura e na arte em geral, o nu deixa de estar ligado à mitologia e assume um papel cada vez mais abertamente ligado ao erotismo. Citemos apenas alguns exemplos como Blake, Boucher, Fragonard, Jacques Louis David ou Courbet e Rodin.

SÉCULO XX

– Na literatura –

No século XX a sexualidade inspirou mais do que em qualquer época antes a arte e a literatura. Quase todos os artistas plásticos e escritores abordaram a sexualidade. Desde Toulouse-Lautrec a Salvador Dali, passando por Picasso, na pintura. Na literatura destacam-se nomes como Guillaume Appolinaire (Les 11 Mille Verges), Georges Bataille (Madame Edwarda), D.H. Lawrence (O Amante de Lady Chatterley), Henry Miller (Sexus; Nexus; Plexus), Anaïs Nin (Vénus Erótica ou A Casa do Incesto), Vladimir Nabokov (Lolita), Anne Desclos (História de O) ou, mais recentemente, Philip Roth (O Animal Moribundo), ou Virginie Despentes (Baise-moi), entre muitos outros.

Em Portugal temos “A Confissão de Lúcio” (1914), de Mário de Sá-Carneiro, “As Novelas Eróticas” (1935) de Manuel Teixeira Gomes, ou, mais recentemente escritores tão conceituados como Eugénio de Andrade, Maria Teresa Horta, Teolinda Gersão, Lídia Jorge, Miguel Esteves Cardoso, Lygia Fagundes Telles ou Inês Pedrosa também se experimentaram nos contos eróticos.

Nesta década de 2010 apareceram em Portugal nomes como Afonso Noite-Luar, António Sem e escritoras como Mélusine de Mattos, Luísa Coelho e D.S. Gold. Do Brasil, destaquemos apenas “A Casa dos Budas Ditosos” (1999), de José Ubaldo Ribeiro, porque seria demasiado fastidioso enumerar tantos escritores eróticos brasileiros, que são bem mais numerosos do que na literatura portuguesa.

– Na fotografia e no cinema –

As outras artes, sobretudo as que eram recentes no início do século XX, como a fotografia e o cinema, também dedicaram algum espaço à sexualidade, embora apenas para um público restrito, nessa época. Na fotografia circulavam, já desde o final do século XIX, postais com cenas ousadas ou eróticas, que os rapazes guardavam debaixo do colchão. E o primeiro filme pornográfico mudo aparece nos primeiros cinematógrafos logo em 1900, com alguma produção constante até aos anos 1920.

Na segunda metade do século XX e sobretudo a partir dos anos 1960, com a libertação sexual, o cinema virado para o grande público deixa de considerar a sexualidade e o erotismo como sendo terrenos interditos. Há muitos exemplos, mas um dos filmes mais famosos e polémicos dessa época é “O último Tango em Paris”, de 1972, realizado por Bernardo Bertolucci, que fala de uma relação sulfurosa entre um homem de 50 anos e uma jovem de 18. Nos principais papéis encontramos a jovem Maria Schneider, uma desconhecida, e Marlon Brando, que nunca ninguém tinha visto completamente nu em filme.

Nos anos seguintes outros filmes criaram polémica como “O Império dos Sentidos”, de 1976, ou “Nove Semanas e Meia”, de 1986, baseado num romance de 1978.

– Na música –

Entre os 1960 e 1980 aparecem também em França cantores que introduzem o erotismo nas suas canções como Fernandel, Colette Renard, Juliette Gréco, Georges Brassens, Magali Noël com Boris Vian, Serge Gainsbourg com Jane Birkin e, mais tarde, já nos anos 1980, Pierre Perret e os Rita Mitsouko. Essa herança é ainda hoje perpetuada em França com cantores como Jeanne Cherhal, Juliette Armanet, Anaïs ou Olivia Ruiz.

Em Portugal, a canção erótica não tem tradição, mas existe, em vários tons de cinza. Na sua versão pimba, desde os anos 1990, com “lindíssimas” metáforas sexual-humorísticas de Quim Barreiros (“A garagem da vizinha”) e de outros cantores, meros clones desbotados do primeiro e afins. Ou, no extremo oposto, o porno-erótico licencioso com canções dos Mata-Ratos (“A minha sogra é um boi”), Ex-Votos (“Subtilezas Porno-Populares”, a primeira canção a utilizar a palavra “pimba”!) ou os Enapá 2000 (“Sexo na banheira é bom” ou “Marilu”), entre outros.

A evolução dos últimos 50 anos mostram que a partir dos anos 1970 e 1980 a sexualidade se banaliza com a proliferação dos filmes pornográficos, das salas de cinema especializadas às cassetes de vídeo pirateadas. Depois apareceram os filmezinhos rodados sem meios por videastas amadores até ao que hoje conhecemos como os conteúdos pagos ou gratuitos dos sites internet porno.

– Conclusão e nota final “As filhas bastardas da literatura” –

Em conclusão, a sexualidade começou por estar ligada ao sagrado e à maternidade. De algo secreto, íntimo, intra-muros, tornou-se hoje algo completamente banalizado, extra-muros, público e até um mero produto comercial. No entanto, é interessante verificar que a sexualidade, na sua forma erotizada, foi sempre fonte de inspiração na literatura e na arte, de uma forma mais ou menos velada ou assumida, consoante a época ou o período em que se vivia.

Apenas mais uma palavra para falar de um fenómeno recente no subgénero – como alguns lhe chamam ainda – da literatura erótica. Estes livros, escritos maioritária e tradicionalmente por homens, eram lidos em segredo e à revelia dos olhares até ainda há bem pouco tempo, basta recuar cerca de 10 ou 15 anos. Hoje, essas letras, que eram consideradas filhas bastardas da grande história da Literatura, chegaram à sua maioridade. Basta olhar para os tops de vendas de livros onde figuram constantemente nos lugares cimeiros.

Esta literatura ganhou sobretudo novo fôlego graças às mulheres, já que esta é agora cada vez mais escrita por autoras e escritoras, que já não precisam de se esconder por detrás de iniciais opacas e misteriosas, porque é também consumida por uma maioria de mulheres. Autoras e leitoras que, 50 anos depois da revolução sexual dos anos 1960, assumem finalmente sem inibições, complexos ou culpabilidades os seus desejos, vontades, fantasias e a procura do prazer e da satisfação sexual.

José Luís Correia

*Este texto foi originalmente escrito para a emissão ‘Bom Dia no Feminino’, de Catarina Salgueiro Maia, Bia Vasconcelos e Magaly Teixeira, difundida via Facebook e Youtube em 15/09/2020, subordinada ao tema “A Sexualidade Humana” (veja abaixo).

**Imagem que ilustra o texto: pintura de Jean-Honoré Fragonard, «La Resistance Inutile» (1768-70).

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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