De que está à procura ?

Colunistas

As unhas e o Santo Graal

O graal, esse cálice por onde Cristo bebeu na Última Ceia, é tido por possuir, entre outros, o poder de curar todo o tipo de mazelas a quem por ele beba. Tendo-se perdido na noite do tempo muitos são os cálices encontrados candidatos a serem reconhecidos como a genuína relíquia. A procura do Santo Graal enche as páginas de ficção há já um milénio, projectando-se mais recentemente também para o ecrã prateado.

Noutros ecrãs, e menos de 48 horas depois da eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil qual é o assunto que domina o Facebook? As unhas da Isabel Moreira. É este o assunto que mais preocupa o comum dos mortais. E falo de Portugal, nem falo do resto dessa Europa por aí a fora onde o que passou no Brasil nem o destaque de um sobressalto merece.

As redes sociais batem hoje em dia o compasso da indignação e agitação social – não fossem sociais as redes. A indignação e agitação causada por um gesto tão inócuo e em nada impeditivo do trabalho que é suposto um deputado fazer (ouvir, analisar e, se assim o entender, intervir) só teria lugar mesmo num mundo, como diz o Pacheco Pereira, do tempo rápido. Ou, como diriam os Táxi, numa “sociedade de consumo imediato”. A indignação surge pelo desrespeito que representa para a democracia. Os mesmo que se indignam com essa falta de respeito pela democracia olharam para o lado e assobiaram quando o agora eleito presidente brasileiro dedicou o voto da impugnação de Dilma Russef a Carlos Alberto Brilhante Ustra. O Coronel Ustra foi o director do Centro de Operações de Defesa Interna, um organismo encarregado de silenciar toda a oposição regime militar brasileiro. Ustra foi o primeiro militar brasileiro a ser condenado por tortura.

Mas como chegámos aqui? Ao ponto de ignorar a substância e prestar atenção à espuma que, onda após onda, o mar nos vem deixar na praia por alguns breves segundos.

Todos nós já recebemos, primeiro por email, agora pelas redes sociais, alertas contra conspirações do mais variado tipo, pedidos de ajuda com a indicação de que cada partilha ou cada “gosto” daria 5 cêntimos para uma qualquer causa, denúncias das despesas de estado, notícia da morte duma estrela musical, etc… Muitas dessas informações revelam-se prontamente falsas. No entanto são repetidas vezes sem conta, aparecendo de novo e de novo. O bombardear desta informação falsa leva a um estado de dúvida e desconfiança constante. A sensação que passa é a dum estado de sítio permanente em que os países estão à beira da ruptura e o caos à nossa espera já amanha.

Na Índia mensagens falsas sobre abusos de crianças levaram à morte de dezenas de inocentes.

Aos poucos foi-se criando um pânico e medo persistentes. Uma necessidade de protecção face a uma ameaça real ainda que invisível. Como nos anunciou Mia Couto no Fórum de Segurança nas Conferências do Estoril de 2010, “(…) para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícias, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.”

Ao princípio muitas destas informações eram difundidas como iscos para ataques informáticos aos utilizadores incautos que iam avidamente clicar na ligação. Mas depois começaram a ser tão só imagens ou textos, sem utilidade alguma para um hacker ou para quem queira seguir o rasto de propagação da notícia – as ligações entre os nódulos que somos nas redes sociais.

Por outro lado, temos casos como o da Cambridge Analítica que mediu como ninguém antes o nosso comportamento no espaço público virtual, ou as “fábricas de trolls” russas que bombardeiam com notícias e comentários falsos as nossas cronologias. Recentemente soubemos que Portugal tem sido alvo desse tipo de ataque de desinformação e que a sua origem está no Canadá.

A propagação de notícias falsas ou deturpadas serve também o propósito de retirar confiança em tudo e todos. Aos poucos deixamos de debater porque não podemos estar certos daquilo que dizemos porque afinal só o vimos numa publicação Facebook replicada 100 vezes. Voltando a Mia Couto: “O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder”.

Com o definhar do debate no espaço público tornámo-nos grunhos. Damos valor àquele que grita mais alto ou que mais forte insulta alguém que tão só discorda de si. É uma sociedade dos mais fortes em que a razão tem cada vez menos razão de ser. Como se de claques de futebol se tratasse. Um espaço sem contraditório.

No Brasil por entre as imagens mais trocadas em grupos WhatsApp só 8% continham informação totalmente verdadeira.

Jair, o Messias, é o novo presidente do Brasil. Entretanto em Niteroi o exército saiu à rua para celebrar a vitória de Bolsonaro. No estado de Santa Catarina, uma deputada do mesmo partido do vencedor, abriu uma linha para denúncia de professores que tomem posições políticas contra o recém-eleito presidente. Os mercados estão em alta, e timidamente vão chegando os parabéns de líderes mundiais salientando sempre que desejam manter as relações comerciais.

Nada se sabe do cálice que Cristo terá usado quando começou a sua peregrinação. Mas no graal, ou almofariz, com que este Messias começará dia 1 de Janeiro de 2019, são misturados ingredientes que vão abrir feridas que se julgavam há muito fechadas.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA