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As funções e o fascínio do Livro

(Em torno de uma memória literária)

 

Sou apaixonada pelos livros. Não concebo a existência sem esta possibilidade infinita de sentados confortavelmente podermos ir tão longe, onde quisermos, sem “custos adicionais”, tendo por comparsas aqueles amigos, que seguramos diligentemente entre as mãos.

Os livros fazem-me companhia desde que me lembro. Quando criança eram os livros infantis da época – as histórias dos príncipes e princesas da Disney, da Anita e da Rua Sésamo – que me povoavam o imaginário. Era a expectativa de os receber no dia seguinte que me fazia brilhar os olhos quando, na lareira ainda morna, pendurava as meiazitas de lã, na noite de 24 de Dezembro.

Nos primeiros anos da minha adolescência foram os livros de Uma Aventura de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada e Os Cinco de Enid Blyton que guardo na memória. Bem como os livros de Maria Teresa Maia Gonzalez, especialmente a Lua de Joana e o Guarda da Praia. Estou certa que todos eles são marcos incontornáveis na memória literária da minha geração.

Houve, ainda, uma outra colecção que marcou essa época – “Patrícia”, da escritora norte-americana Julie Campbell. Na verdade, o primeiro livro que li “O Segredo da Casa Azul” era da minha mãe. Ainda hoje passados tantos anos recordo o entusiasmo de ler os seus mistérios. A boa notícia é que, em 2014, regressou às livrarias, em português, pelas mãos da Editora Oficina do Livro.

A seguir, e até à maioridade, li especialmente poesia. Tornou-se parte de mim todo aquele mundo novo de evasão e beleza. Ganhei gosto pelo som e pela expressão da palavra e aprendi o peso e o poder que ela possui. Vivi a poesia nesses tempos com intenso deslumbramento. E descobri os poetas. António Nobre. Florbela Espanca. Fernando Pessoa, especialmente como Alberto Caeiro. Miguel Torga. Eugénio de Andrade. António Ramos Rosa. Sophia de Mello Breyner Andresen. Manuel Alegre. David Mourão Ferreira. Bebia os lugares que eles criavam. A poesia tem uma grande componente espacial, de contexto e (ainda melhor) de subtexto. Cada poema desencadeia um cenário onde imaginamos o enredo a acontecer e que pode até nem estar ligado com a palavra escrita, mas com a ideia, com a sensação ou êxtase que ele nos traz. É como uma tela que é pintada diante dos nossos olhos por uma mão mágica. Somos nós a entrar no poema. E eu ficava muito tempo dentro daqueles poemas, a respirá-los, a senti-los, maravilhada.

A poesia proporcionou, ainda, a admiração pela Língua Portuguesa. Não é sem motivo que, e citando Pedro Lamares: “Portugal é um país de poetas, onde mais e melhor poesia se produz, se escreve e traduz para o estrangeiro” (TEDexOPorto, 2015). Tem que ver com o génio dos seus poetas, mas também com a beleza inaudita da Língua. Génio e beleza que ainda hoje descubro.

Lia ainda outros autores, sentada no parapeito da janela do meu quarto. Adorava ler ali, pela possibilidade de descansar os olhos do livro e fitar a Serra e aí encontrar respostas. Li Paulo Coelho. Li Nicholas Sparks, Laura Esquivel, Sveva Casati Modignani e Joanne Harris, como as raparigas da minha idade.

Nas horas mortas, enquanto fazia voluntariado num certame cultural na minha terra natal, dentro de um galeria de arte com paredes de casa antiga, fria, escura mas ao mesmo tempo estranhamente aconchegadora, rodeada de toda aquela Arte, que ornamentava as paredes e as enchia de vozes, cheiros e cor, li pela primeira vez Isabel Allende, Retrato em sépia. A sensação de, naquele contexto, absorver aquela história ainda agora está em mim. E a admiração pela autora também.

Depois insisti em ler José Saramago. E na segunda tentativa de ler “O Memorial do Convento” senti que estava a ler o melhor livro que alguma vez tinha lido (e que li até agora) e fi-lo sem interrupção, absolutamente arrebatada. Hoje a história de Blimunda e Baltazar ainda me pertencem, tal como o talento do escritor pertence a todos nós.

Em seguida, li os clássicos (e ainda me faltam tantos). Italo Calvino fez sobre eles esta afirmação soberba: “Um clássico é um livro que nunca acaba de dizer o que tem para dizer”.

Depois desenvolvi interesse académico pela antropologia, pela sociologia, pela política e movimentos sociais, pelos direitos humanos e sociedade contemporânea e os livros coincidiram-lhe.

De valter hugo mãe li “A máquina de fazer espanhóis” com admiração. Tentei reencontrá-lo, mas… Talvez um outro dia. Li vários excertos de livros de Mia Couto. Lindos. Na poesia descobri Alexandre O´Neil. Com a chegada do meu filho encontrei os belíssimos livros de Constança Cordeiro Ferreira, especialmente “Os Bebés Também Querem Dormir” que marcou aqueles dias ensolarados.

E poderia continuar… o que quis mostrar recorrendo às minhas memórias literárias é que o livro é um companheiro, um amigo, um cúmplice que nos acompanha em cada fase da vida, seleccionado pelo nosso gosto pessoal, pelo contexto da nossa experiência e até por questões de moda. E em todas as fases pode ter, se o quisermos, papel ativo, porque é multifuncional e multidimensional.

É alimento para a alma, que se absorve com entusiasmo, alegria e o encantamento de um aventureiro perante o mistério das páginas que ainda estão por ler. É o primordial instrumento de cultura e partilha do conhecimento, enriquecendo-nos com os seus lugares – as Feiras do Livro, as Bibliotecas, as estantes da nossa casa. Guarda as epopeias, as aventuras e as desgraças da História do Homem, isto é, do que somos feitos. Traz-nos inquietação e questionamento, e com eles reflexão e crescimento, como disse Franz Kafka: “Apenas se deveriam ler os livros que nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para quê lê-lo?”. Estimula a nossa imaginação, mas também a nossa memória, e assim é um reduto do passado mas também é a ambição do futuro. Respondendo a questões novas ou antigas proporciona o autoconhecimento. Mas é ainda como o veleiro que nos transporta para a viagem, para o outro, para a diversidade, para o mundo todo que nos espera. É intimidade mas também é alteridade. E, ainda, pode salvar-nos, porque nos permite povoar a nossa solidão e encher de sentido horas que não o tinham. Oferece-nos, em sumula, a capacidade de nos transcendermos. Compensa cada grama do seu peso e cada cêntimo investido pela vastidão do horizonte que nos proporciona, quer olhemos para dentro, quer olhemos para fora.

Esch Sur Alzette, Luxemburgo

16 de Junho de 2017

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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