
A verdade é um conceito universal, imutável e essencial à justiça. Ao longo da história, episódios marcantes e trágicos de figuras públicas em todo o mundo continuam envoltos em mistério, alimentando teorias, dúvidas e especulações. Nos Estados Unidos, os assassinatos de John F. Kennedy, Robert Kennedy e Martin Luther King Jr. continuam a ser cicatrizes abertas na memória coletiva, cada um deles simbolizando, de formas distintas, o impacto de forças invisíveis que moldaram as sociedades da segunda metade do século XX. A recente iniciativa para reabrir investigações sobre estes casos emblemáticos levanta questões profundas sobre o papel das instituições democráticas e o direito dos cidadãos a conhecerem a verdade.
Em Portugal, com uma história igualmente marcada por eventos de natureza controversa, este movimento global deveria ecoar na reanálise do caso de Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e os restantes ocupantes do trágico acidente de aviação em Camarate. Será que chegou o momento de enfrentar as sombras do passado? Será possível fazer luz sobre aquilo que, por décadas, foi mantido sob véus de incerteza?
O caso de John F. Kennedy, assassinado em Dallas a 22 de novembro de 1963, é, talvez, o mais estudado e debatido da história moderna. A versão oficial da Comissão Warren, que atribui o crime a Lee Harvey Oswald, um atirador solitário, tem sido contestada ao longo das décadas por peritos e cidadãos comuns. As teorias variam: um complô interno, envolvimento da CIA, máfia, ou até interferências externas de países como Cuba ou a União Soviética. A falta de transparência nos documentos oficiais, mantidos em segredo por décadas, alimenta uma desconfiança generalizada.
O mesmo se aplica aos assassinatos de Robert Kennedy, morto a tiro em junho de 1968, e Martin Luther King Jr., silenciado dois meses antes, em abril do mesmo ano. Ambos eram símbolos de mudança num país polarizado por questões de direitos civis, desigualdades sociais e guerra. A reabertura das investigações sobre estes casos, à luz de novas tecnologias e métodos de análise forense, é não apenas um passo em direção à verdade, mas também uma oportunidade para reafirmar o compromisso de uma sociedade democrática com a justiça e a integridade histórica.
Se os Estados Unidos, com toda a sua complexidade política e social, se mostram dispostos a revisitar os alicerces da sua própria narrativa histórica, por que não deveria Portugal seguir o exemplo?
O acidente de aviação em Camarate, ocorrido na noite de 4 de dezembro de 1980, tirou a vida ao então primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, ao ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, e a mais quatro ocupantes da aeronave. Desde o primeiro momento, este episódio dividiu opiniões: terá sido um mero acidente ou um atentado premeditado?
As investigações oficiais concluíram que o desastre foi causado por uma explosão a bordo, mas as razões por trás deste facto continuam envoltas em mistério. Alegações de corrupção, tráfico de armas e interesses obscuros pairam sobre o caso, tornando-o um símbolo de tudo o que pode correr mal quando a verdade é substituída por conveniências políticas.
Ao longo dos anos, várias comissões parlamentares de inquérito foram criadas, cada uma acrescentando novos detalhes à narrativa, mas sem nunca oferecer uma conclusão definitiva. A sensação de impunidade e negligência institucional alimenta uma descrença profunda nas instituições democráticas e na justiça portuguesa.
Reabrir o caso Camarate, tal como os Estados Unidos estão a fazer com os assassinatos dos Kennedy e de Luther King, não é apenas um ato de justiça histórica. É um compromisso com o presente e o futuro. Uma sociedade que não enfrenta as suas feridas passadas arrisca-se a perpetuar ciclos de desconfiança, opacidade e injustiça.
A transparência é a base da confiança entre os cidadãos e os seus representantes. Quando episódios como Camarate permanecem por esclarecer, deixam uma mensagem perigosa: a de que os poderosos podem escapar às suas responsabilidades, e de que os interesses obscuros podem prevalecer sobre a verdade.
Além disso, a reabertura de processos históricos, muitas vezes considerados encerrados, envia uma mensagem clara de que o tempo não apaga a importância da justiça. Pode servir como um alerta para quem tenta manipular a verdade, mostrando que a história não perdoa, e que as gerações futuras têm o direito de saber o que realmente aconteceu.
Ao defender a reabertura do caso Camarate, não se trata apenas de exorcizar fantasmas do passado. Trata-se de reafirmar um princípio ético fundamental: a verdade deve prevalecer. É compreensível que tais iniciativas enfrentem resistência. Afinal, muitos dos que têm a ganhar com o encobrimento do passado continuam a deter poder e influência.
No entanto, a justiça não deve ser seletiva nem subordinada a interesses particulares. O exemplo norte-americano, apesar das suas imperfeições, mostra que nunca é tarde para enfrentar os erros do passado. Portugal, como uma democracia madura, deve ter a coragem de olhar para dentro e confrontar as suas próprias sombras.
Camarate não é apenas um caso arquivado; é um símbolo da luta pela transparência, pela justiça e pela memória coletiva. Reabrir este processo será um ato de coragem e de responsabilidade histórica. Será o verdadeiro teste de maturidade de uma democracia que, mais do que evitar polémicas, deve buscar a verdade — toda a verdade.
António Ricardo Miranda