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Sobre o que se está a passar em França

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Sobre o que se está a passar em França, li o desabafo da jornalista Nora Hamadi com o qual me identifico a 100%, como ela também há dias que me sinto completamente desmoralizada, com raiva, sem vontade de escrever. O backlash de uma revolta costuma vir um pouco mais tarde, costuma vir aos poucos, mas desta vez ele foi tão massivo, descomplexado, tão sem demora, sem respeito, sem empatia.

Um miúdo foi morto por um polícia à queima-roupa. Um miúdo para quem tanta gente aceita e até defende a pena de morte, sem julgamento e com sofrimento. Foi impressionante a rapidez com que a “sociedade” se organizou para o condenar a ele, à mãe e todos os jovens árabes, negros e pobres dos bairros periféricos, a rapidez com que a extrema-direita conseguiu angariar mais de um milhão de euros para a família de quem matou um miúdo, a rapidez com que o poder político passou da falsa compaixão ao discurso repressivo, desumanizante, excludente, completamente despolitizado, sem contexto, sem causalidade, em que a questão do racismo e da exclusão social desaparecem, como por magia, da equação. Se havia alguma dúvida do porquê destes miúdos não se sentirem “filhos da República”, tiveram aqui a confirmação de que não estão errados.

A eles são pedidas todas as contas, aos polícias que mentem, que violentam, que discriminam, que matam, que votam massivamente na extrema-direita, que chamam os miúdos de “nuisibles”, “sauvages”, aos que afirmam não ser racistas, nem votar na extrema-direita, mas preferem proteger o que eles chamam de minoria de “maçãs podres”, pede-se para que continuem, até para serem ainda mais severos. Pouco importam os relatórios internacionais que denunciam o racismo e a violência da polícia, pouco importa se a ONU alerta a França para este problema. Pouco importa se tantos estudos universitários e testings de associações demonstram um controlo policial muito maior de pessoas negras e árabes. Pouco importa se as desigualdades sociais são massivas. Só um dado factual entre tantos: as escolas do ensino básico (2° e 3° ciclo) mais pobres de Paris têm mais meios do que as escolas mais ricas de Seine-Saint-Denis, mesmo aqui ao lado.

Transforma-se uma juventude tão diversa numa massa compacta de seres desabitados e não fazendo parte do corpo social, tantos miúdos franceses que serão para sempre estrangeiros e porque são estrangeiros, o problema “não é nosso”, o problema não é do país, só das mães e dos pais, esses seres também desabitados que serão para sempre estrangeiros, mas que deram tanto jeito durante a crise do covid enquanto “travailleurs essentiels”. A memória é curta e seletiva.

Em França, como em Portugal aliás, muitos não conseguem pensar, nem amar a “nação” na sua diversidade. Racistas que não gostam de França, tal como ela é. Sonham com uma França imaginária, impossível. Amar não significa fechar os olhos a tudo, ser “angélico”, mas significa fazer comunidade, ouvir, fazer compromissos, a base da democracia. Considerar que sim, os filhos são nossos e não se põe um filho fora de casa.

Daqui a uns dias, na festa nacional, celebrar-se-á uma revolução não pacífica, mas como diria o Baldwin nem todos têm acesso ao estatuto de revolucionários. Hoje, existem revoltas toleradas porque apesar de serem violentas são feitas pelos “nossos”, mas a revolta do jovem árabe e negro só pode ser selvagem, sem causa, nem fim. Também houve violência e ataque de eleitos (durante meses e meses) em movimentos, tão diferentes entre si, como o dos coletes amarelos, dos antivax, nas manifestações contra a reforma das pensões. Ainda há poucas semanas um presidente de câmara teve de se demitir por causa da extrema-direita, queimaram os seus carros, tentaram queimar a casa. Apesar do repúdio da violência nessas alturas, nada se compara com o escrutínio, com a repulsa extrema de que estes jovens são alvo.

E, no entanto, a revolta na sua expressão mais violenta está a parar, e a última foi há 18 anos, também por causa da morte de dois miúdos. Não serão nunca nem as vítimas ideais, nem os revoltosos ideais. Pior, nunca poderão sequer ser vítimas ou agentes de uma qualquer vontade ou pensamento de transformação. Não têm sequer direito a serem jovens. Aliás, já se ouvem as vozes que defendem o recuo da idade legal em vários domínios para que a repressão possa começar ainda mais cedo. Educação, prevenção, sabe-se lá o que isso é? Invenção de esquerdistas-wokistas. Quem ouve estes jovens? Quem acredita neles quando dizem que têm medo, quando dizem que o Nahel podia ter sido um deles, quando dizem que podia ser um irmão?

Não é preciso mais reflexão, mais grupos de trabalho, mais brainstormings sem fim, nem ação. Já muito foi escrito, existem relatórios, existem associações, pessoas no terreno. Falta vontade política, falta vontade… A ordem não é a justiça. A ordem que resulta da repressão não é perene, não é autêntica, é uma paz podre. Sem justiça não há paz!

A educação, a prevenção não deverão ter unicamente como alvo estes jovens, mas a sociedade no seu todo. Falta educação à empatia, falta educação à gestão de conflitos, à contestação e organização social em democracia. Falta compreender o que significa mesmo a Igualdade. Falta horizontalidade no poder, falta horizonte…

A má notícia é que isto pode tudo piorar, a boa é que o espaço para que melhore é enorme. Uma pessoa consola-se como pode. 🙄 Fomos avisadxs por quem nos precedeu para estes momentos de desespero. E como sabemos não ter esse privilégio, choramos de joelho no chão, mas de punho levantado. Justiça para o Nahel, para o Alhoussein, para todxs xs outrxs e as suas famílias. Nu sta djunto.

“O opressor faz da sua violência parte do funcionamento da sociedade. Mas a violência do oprimido torna-se disruptiva, e porque é disruptiva é fácil de a reconhecer, e então torna-se o alvo de todos aqueles que na verdade não querem que a sociedade mude.”
Kwame Ture

Luísa Semedo

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