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Sinais de mim (terás de me ler para me conheceres)

Há uns traços bem vincados que me riscam a cara, relâmpagos em dias de tempestade a riscar o céu cinzento e tenebroso, tão tenebroso como é uma espécie de incredulidade quando em manhãs de olhar mais atento à imagem que o espelho reflete, descubro esses riscos que me parecem mais visíveis entre os cantos dos olhos e o maxilar superior, e que…tal como os relâmpagos em dias de tempestade, irão desaparecer do céu à medida que o dia, os seus afazeres e as suas normais preocupações me absorverão.

Muito provavelmente voltarei a aperceber-me deles alguns dias mais tarde, ou talvez semanas, meses, e é por esse ignorar propositada e inconscientemente consciente realidade, que teimo em não querer ver, que me surpreende por vezes a maneira como esses traços, à medida que o tempo avança, se tornam cada vez mais visíveis, cada vez mais marcantes.

Há uns pequenos inchaços nas pálpebras inferiores que vão aparecendo em manhãs madrugadoras e noites tardias e mal dormidas, e preocupações nos seus entretantos.

E o cabelo que em desleixo cresce mais do que a idade assim o permitisse, só porque a autoestima anda pelas ruas da amargura, vai deixando a descoberto aqui e ali umas madeixas de um cinzento esbranquiçado e que, quisera eu ler o seu significado, quisera eu juntar as peças ao puzzle dos traços vincados na cara e os inchaços nas pálpebras inferiores, e porque não, porque faz parte do mesmo puzzle, esta dor constante entre o polegar e o indicador, e que os maus agoiros falam com certezas que não têm, apenas conjeturam, serem os primeiros sinais de uma doença com um nome sem graça, por vezes medonho pela má fama que tem, artrites, deixar-me-ia ficar na cama a forçar um sono que ainda procuro, ou, dela deslizo e salto para a vida e começo a vivê-la finalmente, porque o tempo perdido não se recupera, e o que não se pode perder é bem menos do que o que ficou para trás.

Há sinais evidentes, e que num esforço quase desumano eu tudo faço por ignorar, que me dizem que o caminho que por vezes me parece longo e sempre tão misterioso, porque uma neblina densa e quase escura esconde os enigmas que se vão entrepondo sempre mais à frente, é o mesmo caminho onde depois da curva pode estar o precipício, e não menos certo é também que depois da curva possa estar uma outra reta, que é afinal de contas uma outra oportunidade, uma outra esperança, uma volta a mais no carrocel da vida.

Hei de partir. Partiremos todos. E ainda bem, mesmo para aqueles que têm a mania de querer saber tudo, programar e organizar tudo, que nessa viagem final, não saibamos o dia da partida, muito embora os sinais que não são nada mais nada menos do que orientações para esse caminho enigmático, nos vão indicando o que foi feito e o que está por fazer e o que nunca se fará.

Hei de partir. Partiremos todos. E na eventualidade de eu partir primeiro, se algum dia me quiseres realmente conhecer, terás que me ler. E não penses que saberás algo de mim só porque leste este texto, escrito em dia, não de maior depressão, mas sim em dia de maior lucidez. Mesmo assim, sabes bem que deixo um rastro de palavras, de frases e parágrafos que como uma mapa, apesar de tudo um mapa difícil de interpretar, mas que se o leres atentamente te levará ao mais profundo de mim mesmo, daquilo que eu sou e sempre fui, daquilo que eu planeei ser e que a vida manhosamente me foi trocando as voltas. Se o interpretares de maneira atenta, saberás mais de mim do que eu mesmo alguma vez soube.

António Magalhães

(Retalhos do Quotidiano, páginas 101 e 102)

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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