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Sim, o fogo

© lusa

O local é a lapa do Anecrial, perto de Alvados, na Serra d’Aire. Está a anoitecer quando três indivíduos entram no abrigo, carregados com os coelhos que caçaram durante o dia. Trazem também madeira de pinheiro silvestre, pinha e alguma caruma para fazer uma fogueira. Assam e comem alguns dos coelhos, mas a maioria é apenas esfolada e as peles guardadas. No dia seguinte, pela matina, estas pessoas abandonam a lapa, levando consigo apenas as peles dos coelhos. Possivelmente irão ter com o resto do bando, para curtir as peles e preparar o acampamento do Inverno que se aproxima.

O que acabei de contar ocorreu há uns 25, 26 mil anos atrás e vem no excelente livro do João Zilhão, “Portugal na Idade do Gelo”. Nesta época, as poucas centenas de pessoas que ocupavam o território (hoje) português estavam perfeitamente integradas com a paisagem, caçando e fazendo uso do fogo sem o qual dificilmente sobreviveriam. Para estes “portugueses”, o fogo era um elemento da natureza, tal como eram os coelhos, o pinheiro silvestre, o sol e a lua.

Avancemos até aos nossos dias, e desçam comigo uns 120 quilómetros mais para sul até uma colina perto das margens do Tejo. Estamos novamente num espaço fechado. Ao contrário da lapa do Anecrial, este é um edifício construído pelo homem e neste momento alberga umas centenas de pessoas. Provavelmente tantos como a totalidade dos “portugueses” de há 25 mil anos atrás. Dentro do edifício há luz, mas não se vê sinal algum de fogo ou chama. Aliás, aqui é proibido fazer fogo, excepto na cozinha do refeitório, e nem fumar é permitido. Dentro deste espaço, nem fumo nem chama, pese embora alguns certamente carreguem consigo um isqueiro no bolso. Estamos no Parlamento Português.

Vinte e cinco mil anos mais tarde, vivemos todos afastados do fogo, que controlamos a nosso bel prazer. Rodamos a chave na ignição, e pequenas combustões controladas dentro de um engenho em metal, carregam-nos durante os 120 quilómetros do Anecrial a São Bento em menos de um par de horas. A electricidade que fornece a luz artificial de São Bento, faz funcionar os computadores, ar-condicionados, etc, é produzida graças a uma chama, que, a quilómetros de distância, arde encerrada dentro da caldeira de uma central térmica. Os deputados que não conseguem passar sem fumar um cigarrinho, têm um isqueiro no bolso para fazer lume quando bate o vício. E, se por acaso, no Parlamento uma chama se produzir onde não é suposto, há bombeiros, sprinklers e extintores para atacar logo o problema.

O nosso domínio do fogo é tão perfeito e nosso contacto com ele é quase sempre em contextos artificiais, que nos esquecemos que o fogo é um elemento da natureza. Olvidamos que o fogo, tal como a decomposição, é uma das formas naturais de partir os nutrientes das plantas e os devolver ao solo. E ficamos surpreendidos por saber que a maioria das plantas, e possivelmente os animais, beneficia do fogo. Daí a nossa perplexidade em lidar com os fogos rurais. Para quem está habituado ou a não ver fogo, ou a vê-lo contido, os fogos rurais são inexplicáveis. Daí a nossa psicose em lidar com o assunto desde os anos 70 em Portugal.

Trouxe-os ao Parlamento, porque é aqui que o Chega quer equiparar os incendiários a terroristas. Uma atitude perfeitamente estúpida, mas compreensível de quem quer a todo o custo encontrar um culpado. Se os deputados do Chega, que como os outros não estão habituados a ver uma chama, se dessem ao trabalho de ler ou ouvir quem estuda o assunto, como a Cristina Soeiro, saberiam que a imensa maioria dos incendiários são pessoas com problemas mentais ou a braços com drogas e vinho. Se perdessem cinco minutos a ouvir o Paulo Fernandes, um especialista de classe mundial em fogos florestais, saberiam que ou temos muitos incêndios de baixa intensidade ao longo do ano ou temos tragédias como o Pedrógão Grande a todos os 10, 15 anos. Pendurar pelo pescoço no pelourinho gente com problemas mentais pode saciar a sede de sangue, mas não vai resolver o problema da acumulação de mato nos baldios desse Portugal abandonado.

Fora do Parlamento, muitos dos humanos que por lá circundam tomam como verdadeiras muitas teorias da conspiração sobre os incêndios. Consoante a moda do momento, após o 25 de Abril os incêndios eram provocados por reacionários. Lembro-me bem de ouvir em pequeno, anos 80, que os fogos eram postos por madeireiros. Nos 90 eram as empresas de celulose, hoje o alvo são as empresas que querem minerar o lítio. Se não vemos o óbvio, que o fogo é um elemento da natureza tal como a chuva, é normal que apontemos o dedo a interesses obscuros. Ignoramos a explicação mais simples, que o fogo já comia mato em Portugal antes do primeiro bando de caçadores-recolectores entrar por Vilar Formoso. E que a ocupação humana do território português tinha por hábito fazer queimadas, para limpar o terreno e evitar os fogos catastróficos que hoje temos.

O que fazer, então? Tal como o fazemos com a chuva, gerir o fogo. Não passa pela cabeça de ninguém proibir a chuva nem culpar o São Pedro quando há inundações. Pelo contrário, construímos diques, canais e regulamos a construção para evitar fazer edifícios nos terrenos aluviais. Com o fogo, o mesmo se aplica. Queimar mato nos meses mais chuvosos e húmidos, para que no Verão o fogo não tenha onde trincar. Incentivar o uso económico do território, para que seja sustentável a sua defesa contra a catástrofe. E onde isso não consiga fazer, o Estado que pague para seja feito. A consigna é simples, é fazer o que os nossos avós faziam. 

Nelson Gonçalves

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