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Semi-auto-biografia-quase-autorizada-e-bastante-incompleta

Nasci e assim permaneci durante tempo indeterminado.

Depois, fui escriba de ur, profeta de memphfis, errante da terra prometida, monge de shaolin, príncipe nirvana, buda, mandarim, amante de pítias, companheiro de ulisses em busca das maçãs de ouro, fui vizir, jogral, rei feudal, espadachim, monge de ordem secreta, cavaleiro de wavel afrontando o dragão de sawa, navegador, conquistador, fui mariana, inês, pioneiro, índio tomahawk, vaqueiro, pistoleiro, xerife, poeta romântico, condutor de locomotivas, piloto de panhards, conspirador contra os tsares, sufrageta surrealista, gangster, detective privado, dupla de marylines, rebelde motoqueiro, fumador de erva psicadélica, punk moicano, golden boy suicida, seropositivo, mulher moderna e aeróbica, grunge deslavado, rapper sem vócabulo, soldado do golfo, astronauta marciano, robot articulado, capitão galáctico cruzando sistemas estelares, viajante do tempo, criador de mundos, mostrengo imortal divertindo-se com os milénios, aborrecendo-se na dobra demorada dos éons

A minha primeira história foi uma fuga para as catacumbas de minha casa natal num verão de mil novecentos e oitenta e quatro. Tinha onze anos e uma redacção para fazer, os meus stôres disseram-me que eu devia pensar em escrever e eu acreditei que sabia, a minha mão ficou orgulhosa, a minha mãe também, eu queria tudo mas faltava-me tudo, sobretudo a ousadia de querer, pensava em como escrever em vez de escrever e não escrevia, lia, lia e tudo o que eu lia parecia que não chegava para aprender a escrever. Primeiro quis ser amnésico, para esquecer tudo o que lia, para poder contar as minhas histórias que no papel pareciam cópias toscas de uma história já contada mil e seiscentos anos antes e com mais mestria que as minhas prosas imperfeitas. Então, nasceu-me a sede de saber, para saber escrever, pensei que para escrever era preciso ter talento e que o talento nascia connosco, não sabia que o talento se trabalha, se forja, se esculpe, se cinzela, se muscula, se sua.

Depois sofri, pensei que para escrever era preciso ter sofrido. Apaixonei-me então por uma impossível loira oxigenada muito mais velha do que eu, tinha ela 15 anos. A minha primeira polução involuntária, uma paixão assolapada e não correspondida, e eu dramático no fim do dia arrastava-me até à escrevaninha, mergulhava a pena tétrica no tinteiro do sangue destilado da minha alma pingando e rabiscava a minha tragédia à luz de um velho castiçal roubado no sótão da minha tia. Uma noite ia pegando fogo à colcha da cama, levei um tabefe da minha mãe e decidi mandar o Poe e o Baudelaire à fava.

Comecei a ler Pessoa e percebi logo que o que eu ia fazer era exactamente o contrário do que ele fez, ou seja menos ópio e menos vinho, mais mulheres e mais viver. Bom, quanto às mulheres, percebi que a coisa não dependia só de mim e pus essa prioridade entre parêntesis. Mas quis viver, sobretudo não roubar tempo de escrever ao tempo de viver. porque pensei que para escrever é preciso primeiro viver, “vivir para contarla”, como diz o García Márquez. Tentei queimar a corda para cortar caminho, tentei atalhos que deram em desvios, adiei a vida por sucedâneos, e o primeiro beijo apareceu fora de horas, demasiado tarde, ao luar, à beira-mar.

Mas agora prova-me que estive errado em desejar o caminho do Oriente, em ir atrás de odaliscas ariscas, as netas do grande khan, que me sussuravam mil e uma estórias sultanas, ou as ninfas bálticas que se agarravam boreais aos meus ombros, ou a praia deserta do mar do norte que os barcos evitavam por causa dos baixios, charolas inanes e deambulatórias de pérolas áureas em fogo, testemunhas de outros tempos.

Ou a onze e meia, que foi todas as mulheres em mim, para meu gáudio, para meu gozo, e eu armado em Lautrec e em Rivera, as fodas eram sinfonias, telas surrealistas, só que eu não sabia que estava fora do tom.

Tantos romances inacabados, tantos sonhos encetados, enxertados, desconchavados. Sei que fui egoísta no sexo, mas o sexo é assim. O amor, não.

Finalmente tu, tanto tempo, tanto tempo demoraste, meu amor, porque nos trocaram as décadas, porque nos trocaram os caminhos se tinhas que vir afagar-te nos meus braços finalmente? És o meu nilo, a minha rosa do deserto em flor, as minhas noites austrais, o meu corpo doce com o perfume do teu beijo, o meu desejo que se espraia num delta furioso e tranquilo ao mesmo tempo, a minha vida, o meu poema?

Vês, queria escrever sobre o meu tempo e acabo a escrever sobre mim, poeira indistinta na linha estratosférica das eras, dos éons, contemporâneo e extemporâneo, escrevo entre parênteses, vá lá, não temas fornecer pedras às turbas da tua lapidação, os querubins fitam-te circunspectos e o teu caminho é por aqui. No princípio era o verbo.

JLC 23.04-22.05.2010

Texto inspirado na minha vida e na minha escrita, depois de ler “Terra Sonora: Sonambular”, de Nuno Viana (pluma branca, 2009)

Foto: Flickr/DrewCoffman/CreativeCommons

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