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Semelhanças entre o culto religioso e o futebol

© Raúl Reis / BOM DIA

Nos campos verdejantes de futebol e nos magníficos templos, a humanidade encontra as suas almas num espetáculo divino e secular. O torneio de futebol e o culto religioso compartilham mais semelhanças do que se pode imaginar à primeira vista nos rituais religiosos e nos rituais seculares ou em eventos culturais. São arenas sagradas onde corações pulsantes e fervorosos de diferentes devotos se reúnem, não só para celebrar a vida, mas para expressarem em comunidade, de maneira aberta e digna, as suas esperanças, receios e alegrias.

Imagine-se os estádios lotados como templos modernos, onde os fiéis se vestem com seus trajes rituais, não de túnicas e mantos, mas de vestimentas e cachecóis vibrantes, cada cor representando sua devoção inabalável a uma equipa, a um santo secular. Estes devotos fazem peregrinações de longas distâncias, enfrentando jornadas de fé, com o coração pulsante de expectativa, na esperança de testemunhar milagres de chuteiras. Eles ostentam não rosários, mas bandeiras, e em vez de velas, acendem as suas paixões com gritos e cânticos que ressoam como trovões, elevando-se aos céus num clamor que busca a graça da vitória.

Os cantores iniciadores de coros, os líderes dos adeptos, orientam os adeptos fiéis em hinos de louvor e devoção, transformando o estádio em um coro celestial. A multidão responde com interjeições de alegria e também gritos de arrependimento, num rito tão antigo como a própria civilização.

Os jovens acólitos (crianças), com olhares cheios de sonhos, acompanham, de mãos dadas, os seus ídolos até ao centro do altar verde onde, de alma e coração se apregoa o hino nacional. Assim, jogadores com “camisas” próprias, adeptos e crianças acompanhantes, expressam de maneira simbólica que em campo e em jogo se encontra toda a comunidade de vida.  Ali, sob os olhos atentos do árbitro-sacerdote, o ritual começa. Cada passe, cada finta, é uma oferenda; cada golo expressa uma epifania: aquele acto tão esperado de consumação e exaltação libertadora como se de teofania se tratasse onde ecoam os sons de trombetas de anjos e arcanjos arqueados em torno da baliza a dar ao golo um sentido superior. 

Nos cultos religiosos, um Deus omnipresente recebe a adoração. No campo sagrado do futebol, os ídolos de carne e osso encarnam as esperanças de milhares. Mas em ambos os casos, há um elemento comum: a busca por sentido, a necessidade de um lar emocional-mental onde as almas possam expressar seus desejos e medos, onde possam mostrar sua veneração de forma palpável e, assim, libertar as diferentes energias que se acumulam nas vidas do seu dia-a-dia.

A beleza desses rituais, sejam eles em igrejas ou estádios, está na celebração da comunidade e na experiência coletiva da alegria. Há algo de profundamente humano que nos junta a todos para celebrar a festa da vida, numa de superar as intrigas mesquinhas, e nos reunir para cantar, rezar, gritar e apoiar juntos. Também a fé no pequeno David que desafia o grande Golias se manifesta em cada jogo onde a pequena equipe pode, contra todas as probabilidades, revelar-se vitoriosa. É a esperança que mantém os fiéis em ambos os domínios – a esperança de que, mesmo perante desafios gigantescos, o espírito humano pode triunfar. A esperança de que o humano deixe de ser mero rival e mesquinho para se tornar verdadeiramente humano.

O melhor rito é aquele que celebra toda a vida, no reconhecimento que cada acto e momento, seja religioso ou secular, contribui para o grande mosaico da existência. A vida é, afinal, um jogo, e a soma dos seus momentos é o que dá sentido à nossa jornada. Cada um de nós é o catalisador da sua própria vida, e nenhum momento deve desviar-nos do campo onde se joga a verdadeira partida: esse campo encontra-se dentro de cada um de nós e expressa-se numa vivência de comunidade.

Vamos todos celebrar, nos templos e nos estádios, nos cantos sagrados e nos gritos dos adeptos, a maravilhosa tapeçaria da vida. Ideal seria que cada um de nós encontrasse, na sua própria arena, a alegria e o sentido que buscamos e nos transcende numa de pensarmos e agirmos a partir do nós descoberto na nossa singularidade, o centro onde se realiza encarnação e ressurreição no mistério do encontro do divino com toda a humanidade.  

Moral da narrativa e ideias inovativas: Qualquer pessoa que oponha os rituais naturais das pessoas uns contra os outros compreende mal o mundo, a humanidade e as pessoas e ainda não chegou a abranger os moventes mais profundos de todas as agremiações e instituições. Enquanto não superarmos o ciclo vicioso de afirmação e contra-afirmação, continuaremos a afirmar uma cultura da guerra sem notarmos que seria possível iniciar uma cultura da paz na complementaridade e na aceitação do erro como momento de superação; para isso haveria que sublimar a guerra e a agressividade humana em jogos, tal com acontece modelarmente no futebol (1). O futebol espelha a nossa vida natural.

A pressão do desempenho, o medo do fracasso, as imagens de masculinidade e, por outro lado, a paixão e a devoção absolutas são moventes bem presentes na arte do trabalho em campo. Tudo isto eleva os jogos a um lugar de ação e de culto. O futebol torna-se num catalisador onde se dissolve a tensão de energias positivas e negativas. Na esfera olímpica, porém, o deus futebol ameaça tornar-se demasiadamente absorvente, exigindo-se, por isso, cada vez mais capacidades de discernimento na maneira de determinar as prioridades orientadoras da própria vida. 

O Campeonato Futebol (UEFA – FIFA) é também o exemplo de desfile e a expressão cultivada de uma sociedade dominada pelos homens que, com este tipo de ritual, exalta a matriz masculina que ordena o mundo segundo as características masculinas e ao mesmo tempo enfatiza os objectivos internos e os métodos de afirmação da natureza. 

Não chega criar campeonatos de Futebol para mulheres no intuito de mitigar a matriz masculina do nosso modelo de sociedade. 

Se nos rituais de futebol se sobrevaloriza a masculinidade secular nos rituais religiosos valoriza-se a feminidade em geral. Para se criar uma cultura humana de paz haverá que conceber pontes entre os polos das energias femininas e das energias masculinas, de maneira a que umas e outras entrem num diálogo de olhos nos olhos; isto para paulatinamente  se ir elaborando uma nova matriz de  equivalência entre características femininas e masculinas sem se cair  no erro de um igualitarismo superficial e masculino hoje dominante – pacote enganoso – que pretende masculinizar a feminilidade tornando-a apenas funcional e deste modo masculinizam ainda mais a agressiva matriz  masculina que domina a nossa sociedade a nível sociológico, antropológico e político-económico numa estratégia militarista. 

Se partirmos da natureza humana e da observação da história dos povos, será de concluir que as sociedades continuarão a seguir a mesma matriz continuando a humanidade a ser uma oficina de reparação.  Neste sentido a sociedade irá continuar a enganar-se a si mesma; no palco humano prosseguirá a aliança de um mercado de transferências a nível desportivo, religioso, político, comercial, económico e da arte. 

“Fomos, somos e seremos sempre todos nós. Acredita, Portugal”, apela Cristiano Ronaldo, de olhar no firmamento. De facto, quem pretende chegar à victória tem de aceitar com esperança o desafio da vida, consentindo também a prova de exercícios do erro para poder avançar numa sociedade feita de vencedores e vencidos!

António da Cunha Duarte Justo

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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