Vamos na quarta jogada de um pingue-pongue que se afigura interminável entre a Assembleia da República, o chefe do Estado e o Tribunal Constitucional, para se apurar a constitucionalidade da lei que regulamentaria a eutanásia na República Portuguesa. O processo iniciou-se há uma boa meia dúzia de anos, sensivelmente ao mesmo tempo que em Espanha. Porém, em Espanha, a eutanásia está já despenalizada desde 25 de junho de 2021, depois de regulada por lei em março desse ano.
Entre nós, a responsabilidade pelos encalhes sucessivos é do Tribunal Constitucional, que, embora longe da unanimidade dos juízes que o compõem (mais propriamente até, quase sempre próximo do empate), invoca constantes argumentos de pormenor para reprovar os projetos de lei e os devolver à Assembleia da República. Mas também os escrúpulos de Marcelo Rebelo de Sousa, decorrentes, em parte, das suas convicções religiosas pessoais, têm sido um grande entrave ao processo.
Ao contrário do que, com grande dose de demagogia, por vezes se propala, a lei da eutanásia, vigente já em numerosos países da nossa zona geográfica e cultural, nada tem a ver com dar caça a velhinhos, deficientes, inúteis ou doentes incuráveis, num intuito de «higienização» social (essa, sim, seria uma lógica nazista). À semelhança do que se passou em Espanha, a lei que uma maioria de deputados do parlamento português tem proposto consiste em prestar assistência na morte a pessoas que, por razões reconhecidas como válidas, a solicitem voluntária e conscientemente a entidades devidamente credenciadas. Não se impõe a ninguém que morra — ajuda-se esse alguém a morrer, quando o solicite e se verifique que a sua motivação tem fundamento (porque é vítima de patologias incuráveis e/ou incapacitantes, porque a vida lhe vedou quaisquer perspetivas e porque o seu «futuro» é um longo e inevitável padecimento, imposto por escrúpulos alheios).
Alguns partidos políticos preconizam um referendo. Um deles, o PSD, opta assim por um cómodo «nim»: fosse qual fosse o resultado de um hipotético referendo, poderia sempre dizer, tanto aos que se opõem a esta lei (no caso de ela ser aprovada), como aos que a apoiam (no caso de ela ser reprovada), que a «culpa» fora do eleitorado.
Fala-se até numa sondagem segundo a qual, num hipotético referendo, mais de 60% dos eleitores portugueses votariam a favor da regulamentação da eutanásia. Mas isto não impede a iniquidade de um tal referendo. A ninguém assiste o direito de se pronunciar sobre escolhas pessoais de outrem, sequer se o pronunciamento for a favor, quanto mais contra.
Também o Chega! advoga um referendo. O seu líder, André Ventura, proclamou que, quando for governo, reverterá de imediato uma eventual lei da eutanásia, que, sonora e melodramaticamente, classificou de «infame».
André Ventura não é parvo. É até muito esperto. Perguntar-me-ão se não é uma redundância: quem não é parvo há de ser esperto. Talvez, mas esta minha afirmação tem duas vertentes distintas: digo que André Ventura não é parvo porque ele sabe perfeitamente que a lei proposta para a regulamentação da eutanásia é decente e humana, é uma lei que visa respeitar a vontade das pessoas e furtá-las a sofrimentos inúteis e inultrapassáveis. E, quando digo que ele é até muito esperto, refiro-me ao seu aproveitamento oportunista desta situação para, visando fins eleitorais, conquistar quer os setores mais conservadores quer os mais mal informados da sociedade portuguesa.
Não sei se alguma vez recorrerei, pessoalmente, à lei da eutanásia. Espero nunca ter de o fazer. Mas, do mesmo modo que não aspiro a casar-me com uma pessoa do mesmo sexo que eu, as pessoas que enveredarem por estas opções, num caso ou no outro, devem ter à sua disposição leis que lho facultem.
De resto, ao contrário do que afirmam alguns demagogos, nem sempre a vontade popular é justa e esclarecida.
Vi manifestações diante da Assembleia da República, de gente com ar angelical, vestida de branco e cor-de-rosa, apelando ao «Senhor Presidente» para que vetasse esta lei (da eutanásia, obviamente) e clamando que o importante era não matar nem ajudar a morrer, mas sim prestar cuidados paliativos e, sobretudo, muito amor, muito amor, muito amor, porque a vida humana é sagrada, só Deus a pode dar e também tirar, etc., etc. Passando por alto o facto de muitas destas manifestações terem por trás a instituição eclesiástica alegadamente mais expressiva em Portugal, a Igreja Católica Apostólica Romana, que no seu historial milenar regista bastos momentos de muito pouca humanidade e respeito pela sacralidade da vida humana, a verdade é que nada impede estas pessoas de prestarem cuidados paliativos e muito amor a quem souberem que os requer. Mas não lhes assiste o direito de se sobreporem à vontade de quem tem razões para optar diversamente.
Vem-me à memória o caso de Luís Marques, matemático português de 63 anos de idade, paraplégico desde os 8 na sequência das complicações de uma poliomielite: completamente paralisado dos ombros para baixo e dependente de terceiros para os mais ínfimos gestos do quotidiano, dependente também, desde há mais de 15 anos, de um ventilador (não invasivo), conseguiu, em setembro de 2020, pôr termo, na Suíça, a 55 anos de sofrimento indizível. Enquanto a eutanásia se concretiza por meio de uma droga ministrada por outra pessoa, o suicídio assistido consiste em entregar a droga ao paciente, que a ministra a si próprio (desde que capaz de o fazer, naturalmente). Na Suíça, só o suicídio assistido é legal, não a eutanásia.
Excertos de Luís Marques durante a viagem de automóvel de Portugal a Forch, na Suíça, possibilitada por três amigos e acompanhada por uma equipa de reportagem da Rádio e Televisão de Portugal: «Não se contam os sítios que doem, contam-se os sítios que não doem»; «Tive cuidados paliativos mas, mais uma vez, estarmos numa cama sem dores… não é existir»; «Se há pessoas que querem isso… para elas próprias [frisou: “para elas próprias”], se foi isso que decidiram… é o direito delas, muito bem… eu não quero nada disso»; «Imagino que seja muito conveniente manter as pessoas isoladas e longe da vista, para não se saber dos sofrimentos insensatos, diários, de minuto a minuto, que uma pessoa tem de encaixar, sem sentido nenhum»; «Isto não é existência; se os políticos, se a sociedade, querem fazer alguma coisa, que façam, mas que não impeçam os que sofrem»; «Não quero estar vivo, sofrer, para gáudio da plateia; não!».
Das três organizações suíças que praticam o suicídio assistido, a Dignitas, a única que o possibilita a estrangeiros, aceitou o seu pedido, ao cabo de um processo de avaliação clínica psiquiátrica. Segundo Silvan Luley, da direção da Dignitas, no final do processo, apenas cerca de 14% dos requerentes avançam de facto para o suicídio assistido, mas terem aquela saída de emergência é muito importante, porquanto, mais do que concretizá-lo, querem ter essa escolha, essa possibilidade. A autodeterminação na morte é um direito humano reconhecido em 2011 pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e que os Estados devem reconhecer e assegurar.
Jorge Madeira Mendes