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“Preciosa”: porque a violência doméstica é uma realidade

“Preciosa”, do escritor Nelson Nunes, é um romance, baseado numa história verdadeira, intenso, comovente e tão cru e frio quanto é a realidade de quem viveu durante anos a fio sob o domínio, a ameaça, e o medo da violência doméstica.

O testemunho poderoso de um filho que viveu uma realidade assustadora, às mãos de um carrasco que por sinal era o seu próprio pai. 

Uma verdadeira homenagem sentida, real, emocionante, à sua mãe, que o salvou e defendeu muitas vezes daquilo que parecia ser uma morte certa. Uma mãe que lutou com todas as suas forças, sofrendo no corpo as maldades e vilanias de um marido violento, enfrentando ela mesma o espetro de uma morte anunciada.

Do livro gostaria de transcrever na integra uma pequena parte, uma amostra do quão profunda e sincera é esta história.

“Não sou capaz de recordar a primeira, a segunda, ou a última vez que o meu pai bateu na minha mãe. De cada vez que o faço, sinto-me invadir por uma tremenda agonia, fruto da dor provocada à minha mãe, mas também do asco que o meu pai faz nascer em mim. Sempre que tento fazer um inventario das suas vilanias, sinto amputar-se qualquer laço ténue que pudesse ainda ligá-lo a mim. Toda a minha identidade se prende à do meu pai sob uma única premissa: aquilo que ele foi, não quero ser. Aprendi a ser filho por saber que nunca foi bom nesse papel. Aprendi a amar porque ele nunca soube fazê-lo. Quis ser um bom marido por saber que foi o pior de todos. “

Diz o ditado que entre marido e mulher, ninguém meta a colher.

Nem sempre o ditado está certo.

No caso da violência doméstica, ela é um crime público, o que significa que o procedimento criminal não está dependente da apresentação de uma queixa, formal ou informal, por parte da vítima, sendo apenas necessário haver uma denúncia ou o conhecimento do crime, para que o Ministério Público promova o processo.

São diversas as sintomatologias e transtornos do desenvolvimento, na violência doméstica, que se podem manifestar, tais como; doenças nos sistemas digestivo e circulatório, dores e tensões musculares, desordens menstruais, depressão, ansiedade, suicídio, uso de entorpecentes, transtornos de stress pós-traumático, além de lesões físicas, privações e assassinato da vítima.

Ainda do livro…

“Isaac segurou na mochila, abriu-a e tirou de lá um revolver. A princípio pensei que era outro presente para mim. Mas não. Toquei no metal frio, percebendo que era uma arma a sério, e senti um baque no peito.

– É uma pistola, já viste?

Não soube o que responder, embora fossem muitas as perguntas que me corriam na mente a grande velocidade. Onde conseguira ele a arma? Para que a queria? Tencionaria matar alguém na taberna? Iria matar-me a mim? Ou a Maria? Ele pareceu ler-me os pensamentos, ou apenas o olhar apavorado que exibia no meu rosto infantil.

– É para matar a tua mãe. Assim ficamos livres e podemos viver juntos.”

“Preciosa”, de Nelson Nunes, é um livro sobre a violência doméstica, pelo olhar de uma das vítimas que normalmente não é usual dar a sua perspetiva destes horrendos acontecimentos em pleno século vinte e um.

Nelson Nunes publicou outros livros de não ficção, entre eles, “Com o Humor não se Brinca”, em 2016, “Isto Não É Um Livro de Receitas”, em 2017, “Quem Vamos Queimar Hoje”, em 2018, e o romance “Preciosa”, em 2019.

Nelson Nunes, escritor e podcaster, foi também cronista do jornal o Público entre 2013 e 2021 e em 2022 venceu o FITA Literary International Awards na categoria de Melhor Crónica. 

Em 2023 Nelson Nunes publicou o livro, “Enquanto vamos sobrevivendo a esta doença fatal” uma exploração pessoal das várias manifestações da morte.

António Magalhães 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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