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“Os cadernos do Gaspar”

Título: Os cadernos de Gaspar

Autor: José Luís Correia

Edições Mahatma, 2020

“Eu escrevo a minha rua, as minhas betesgas, vielas, os meus impasses, os meus trilhos e caminhos, escrevo por onde vou e onde me levam os meus próprios passos, sem ironias nem cansaços. Sou apenas eu, o Gaspar. Com as minhas características, as minhas cicatrizes, protuberâncias pudendas, cabos e penínsulas fantasma.”

A escrita diarística é um subgénero narrativo com características bastante definidas quer do ponto de vista temporal, espacial, quer na especificidade narrativa. No dicionário de narratologia de Carlos Reis diz-se que: “o diário narrativo pode aproximar-se da lírica, no que toca à orientação modal. Essa proximidade decorre de uma outra: a do acto da escrita, relativamente àquilo que a suscita; de facto no diário o homem dá testemunho da hora acabada de transcorrer…quem escreve um diário liberta-se cada dia na medida em que adopta uma distância e dá testemunho do já decorrido.”

É neste género literário que José Luís Correia vai dar voz ao Gaspar, o narrador da obra e também personagem principal, Gaspar narra as suas vivencias, seus medos, as suas angústias. O caminho que o leva por vezes à perdição, porém, muitas vezes num sentido de encontro, de libertação, de salvação. A linguagem varia entre o vulgar e a linguagem cuidada, dependendo das situações e do interlocutor.  Mas sempre alternando os discursos entre o dialogismo, a lírica e o ensaio.

No espaço temporal de 13 meses, e em espaços distintos, como o Luxemburgo e Portugal, que a narrativa do diário de Gaspar vai evoluir. Há em todo o decorrer da narrativa momentos de uma enorme lucidez, de introspeção, de vontade de compreender o homem, e sua conduta de vida. “Engano-me sempre no caminho, caio sempre no engodo, mas vou. Vou-me a elas como um insecto atraído pela luz consciente de que sabe que o consumirá, mas incapaz de alterar a trajetória suicida, de se mover do mergulho da eternidade”

Gaspar é um homem marcado pela vida, um homem em conflito com uma imensa densidade psicológica, vive a vida no presente. Relaciona-se com outras personagens que partilham do mesmo ímpeto sexual.  É um homem moderno, gosta de todo o género de arte, literatura, teatro, música e gosta muito de mulheres, num primeiro tempo, gosta do prazer físico que elas lhe proporcionam, é a personificação do mito de Don Juan. Gaspar é também a metáfora do homem da modernidade segundo descreve o sociólogo Zygmund Baumann.  Um homem que quebra “os vínculos sociais tradicionais, ao alarme da solidão e à multiplicação das relações sem compromisso baseadas apenas na gratificação que delas se extrai.  É a transposição para as relações humanas do modelo das relações consumidor produto e dos ciclos de desejo, coisas e gratificação que se tornam num fator de adiaforização ou anestesia moral.”

Há nesta narrativa diarística uma segunda personagem, com uma função muito importante, e que vai servir de estímulo para a tomada de consciência, para o despertar e consequentemente a transformação do Gaspar, que curiosamente também é do sexo feminino. Maria Helena.  Há entre Maria Helena e Gaspar uma relação profunda de amizade, muito próxima do amor, mas sobretudo de cumplicidade, E é Maria Helena com as suas vivencias, o seu apoio afetivo e moral o principal catalisador da transformação do Gaspar.

No decorrer do tempo, depois de cair inúmeras vezes nas armadilhas do sexo e dos encontros sexuais ocasionais,  da plenitude física , apesar do vazio existencial,  imenso, que isso muitos vezes lhe proporciona, Gaspar reflecte: “Sorvo o café como faço com a vida, amarroto o guardanapo como os meus dias, lambo a colher como a esperança, rasgo aos bocadinhos o pacote de açúcar como a minha alma que espalho sobre a mesa em pó. Sujei o pires e a mesa de mármore preto com migalhas da minha existência.(…) Jogado num canto, inventado fins de mundo, como se o mundo lá fora não chegasse, torturo a mão, a caneta e este papel que papel que mais tarde será feixes de luz mas merecia melhor sorte, como ser origami ou caderno ordenado de aluno assíduo que ainda acredita que o mundo é redondo. Em vez disso é antro, recetáculo alacre e sedento, baú de inépcias tempestuosas, mundo quadrado e fechado, introspetivo, introvertido, frustrado…”

E a metamorfose acontecerá, mais adiante. Curiosamente proporcionada pelo confronto com fantasmas do passado, curiosamente em Portugal, berço do personagem. A morte e renascimento de Gaspar é um momento simbólico na narrativa, Terá sempre de haver uma morte para que  haja renascimento, terá sempre de haver combate para se ganhar a guerra, e esse combate Gaspar enfrenta-o quando decide enfrentar as feridas do passado, quando a verdade das ações o confrontam numa luta entres as trevas e a luz.

Terá o Gaspar vencido a sua guerra interior?

Terá o Gaspar recuperado a confiança no amor como verdadeira união dos corpos e das almas?

Em todo o caso, a vida de Gaspar fundamenta-se num viver pleno, numa imensa procura de lhe dar sentido, com a erotização dos corpos, mas também de tudo o que o rodeia. Da gastronomia às artes, da vontade de escapar ao esquecimento através da paixão pela literatura, mais concretamente a vontade criar, de cumprir-se.

A literatura nasce da vontade de escapar à morte, ao olvido, ao Lethes. Nasce da vontade criar, contar, de nos contarmos a nós mesmos e aos outros, do que a nossa vida conta, contou, contará. Se o que fazemos e somos puder ser contado é porque faz sentido, pensamos e cremos. A literatura nasce da necessidade de sentir que fazemos sentido”.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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