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Onde para a tropa – Segunda parte

(Leia aqui a primeira parte)

A fase dos murros no peito e dos insultos às Amélias, tinha ficado na Calçada da Ajuda, acabada a recruta.

Na bonita e típica cidade de Évora a conversa já era outra.

E foi aí que a verdadeira aventura da tropa começou.

É claro que se fosse a recordar aqui em palavras escritas, uma parte que fosse, dessas aventuras, teria muito que escrever, reduzindo ainda mais aqueles que ainda vão encontrando paciência para ler os meus devaneios.
Por isso, passo já para aquela pergunta que faço a mim mesmo nas alturas de maior nostalgia.

Onde pára o grandalhão do Alentejo a quem eu uma noite roubei a almofada, enquanto ele foi à casa de banho, e ele, de olhos arregalados que mais pareciam os faróis dos barcos de Alcântara, de mão aberta, que também parecia ter o tamanho da talocha de um trolha, a dizer-me,

– Se sei que foste tu Magalhães, vou-te dar uma chapada nas costas que tas colo ao peito.

– Estás louco Neves, tira pra lá a manápula. Não fui eu.

Ou o Ratana que era tão grande que deitado no seu beliche ficava com os pés de fora, e como se isso não bastasse dormia com os olhos semicerrados.

Havia quem afirmasse que ele era tão desconfiado que nem a dormir fechava totalmente os olhos.

Outros diziam que era um alentejano preguiçoso e que a meio de fechar os olhos para dormir, já tava tão cansado que nem se importava de dormir assim com eles meio abertos.

Onde pára aquele preto que dizia ter uma hérnia na cabeça, e usava essa desculpa para justificar a sua inabilidade em saltar o buraco de três metros de comprimento, caindo lá dentro em todas as tentativas.

Quando emergia da lama… ”o meu problema é esta hérnia na cabeça…”

Onde pára o branco que se masturbava todas as noites no beliche de cima, e a quem eu, às vezes por pura galhofice, na hora da sua crucial aflição, enfincava os pés na tábua debaixo do seu colchão, e levantava-o num ângulo de cerca de quarenta e cinco graus, e ele mesmo assim não abrandava um segundo que fosse até que todas as tensões se lhe esvaziassem corpo fora.

Onde pára aquele tipo de quem já nem o nome me lembro, e que da janela do comboio que ia perdendo velocidade à medida que se aproximava da estação de Aveiro, apontava com um orgulho desmedido os sítios onde segundo ele, “ia aos pandeleiros.”

Onde pára o Pereira do Algarve, que foi campeão nacional de full contact, e que a meio da noite se levantava da cama, tirava o estojo da barba e a toalha de dentro do armário, ia à casa de banho, escanhoava os queixos, voltava à caserna, atirava com o estojo para o chão, dava dois murros na porta do seu armário e deitava-se.

Descobri que dormia o tempo todo, desde que se levantava para tirar as coisas do armário, e que ia e vinha, da casa de banho.

Um dia, acabado o serviço das 2 da madrugada às 4, estou sentado na beira da minha cama a falar com o Vieira, e o Pereira, vindo da casa de banho, ao deitar-se bateu com a cabeça no ferro da cabeceira do beliche, e acordou.

Foi o cabo dos trabalhos para o convencer que não tínhamos sido nós a acordá-lo.

– Palhaço, – disse-lhe – ainda tens a toalha às costas.

O Pereira era sonâmbulo.

Onde pára o Lavrador, aquele que parecia ter levado com um tijolo na cabeça com tanta força que este parecia ter ficado alojado pelo lado de dentro da testa.

O Lavrador gostava muito de fumar cigarros de haxixe. Um dia partilhei umas passas com ele, e o Dias, de Vila-Nova-de-Gaia, puxou-me por um braço, levou-me a um canto da caserna e com um ar preocupadíssimo, disse-me,

– Ó Magalhães, não fumes dessa merda. Queres ficar com uma testa como a do Lavrador?

E a maneira como ele o disse despoletou em mim uma gargalhada tão grande e espontânea que ainda hoje, cerca de trinta e cinco anos passados, me dá vontade de rir.

Onde pára o Bamba de Sesimbra que quando bebia mais do que era capaz de aguentar, começava a chorar que nem uma criança e contava a história da sua vida quase desde que nasceu até ao dia em que teve de vir para a tropa.

– Estás bêbedo, Bamba, queres fazer o favor de calares a matraca?

E ele parava por uns escassos segundos, olhava à sua volta como se fosse um naufrago desesperadamente à procura de algo a que se pudesse agarrar, e desatava num berreiro que mais parecia uma criança mimada, a quem haviam tirado o seu brinquedo favorito.

Onde pára o telefonista cheio de gestos adamados, a quem nós, os seus camaradas, gostávamos de lhe fazer uma visita de vez em quando, só para criar confusão na sua central telefónica.

De pulsos quebrados, o corpo a pavonear-se em gestos efeminados, colocava-se por detrás da cadeira onde nos sentávamos para criar confusão na constelação de pequenos manípulos, que puxávamos para cima e para baixo criando uma enorme confusão, deslizava as suas mãos de cera, finíssimas, pelo nosso rosto, apertando-o, e com uma voz esganiçada que alongava ao dizer, “não mexas nisso”, acabava por deslizar pelo pequeno cubículo onde fazia serviço, numa excitação e alegria pela nossa visita, que era incapaz de esconder, demonstrando assim que também ele se divertia com toda a palhaçada.

Onde pára o meu bom amigo Coelho da Amora que com a sua paciência e perícia me treinou ao ponto de me pôr a correr ao seu lado, ele que era um campeão de atletismo, durante quase duas horas sem parar. Até aí eu corria dez minutos e já arfava por tudo quanto era lado.

A estas memórias estão associadas as músicas, Porto Côvo, de Rui Veloso, e Dou-te um Doce, de Lena D’Agua, que passavam na televisão do bar do quartel, as bonitas e características ruas de Évora, a praça do Giraldo, a Capela dos Ossos, o Templo de Diana, e uma nostalgia com ganas de agarrar este passado largado no tempo, só para o (re) viver uma outra vez.

Onde pára o meu amigo Ferreira de Torrados, de quem eu dou por mim às vezes a pensar, “vivemos tão perto um do outro e eu não sei nada dele há anos”, e depois logo me ocorre que mais de dois mil e quinhentos quilómetros que nos separam, não é tão perto assim. É que às vezes, perdido nos meus pensamentos e nas saudades, esqueço-me que há mais de vinte anos que o meu dia a dia é longíssimo de toda esta gente.

As amizades ficam sempre gravadas no coração e impressas na memória, mas as pessoas que as protagonizam, à medida que vão avançando na sua caminhada pela vida, por vezes vão-se movendo em diferentes direções, e a vida em si lá se vai encarregando de provar que nada dura para sempre, tudo tem o seu tempo, e nem sempre é a esperança a última a morrer, como se diz, porque as memórias das amizades de quem seguiu um caminho diferente do nosso, só morrem quando quem as carrega, chega ao fim do seu caminho.

“Roendo uma laranja na falésia,
Olhando o mundo azul à minha frente…”

“Dou-te um doce,
Em troca de um beijo salgado…”

Onde será que pára toda esta tropa?

 

(Retalhos do Quotidiano páginas 77 a 83)

António Magalhães

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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