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O regresso dos heróis, o fim do mito e a nova identidade

Em tempos de pandemia, inevitável recessão económica e desconfinamentos algo apressados, mas compreensíveis se olharmos para o “grande jogo”, lembrei-me de que, desde a 25ª hora, um sector de actividade, muitas vezes desconsiderado por estereótipos errados, foi o primeiro a dizer presente, agarrando um desafio perigoso, pois colocava-o em contacto com o vírus. Estou a referir-me às empregadas de limpeza, que tudo limpam e que merecem ter o equipamento que as devem proteger para poder fazer o trabalho que lhes é pedido. E entre elas estão muitas portuguesas que reconheço, saúdo e agradeço. O vosso trabalho prestigia Portugal.

E no dia 20 de Abril regressaram os nossos heróis, armados com a sua ferramenta e maquinaria, que também põem em risco, todos os dias, a sua vida, acrescido agora com o vírus, esperando que uma adequada protecção lhes permita continuar a dar a este país o que ele precisa: habitações e infraestruturas públicas. Tenho muito orgulho neles, que também engradecem Portugal e contribuem para o desenvolvimento do Luxemburgo. Gostaria que acabasse a ilegalidade das contratações a que o sector fecha os olhos, em particular aos casos que configuram um claro tráfico de seres humanos, mas isso é matéria para policias, ministérios públicos e cooperação fronteiriça.

Chegado aqui, não posso esquecer também os muitos funcionários portugueses que trabalham nas instituições europeias, em empresas privadas, luxemburguesas ou estrangeiras aqui sedeadas, em profissões liberais, em associações e misericórdias, assim como os muitos luso-descendentes que ocupam lugares na administração pública local (que saudades de Félix Braz!). São igualmente merecedores do meu grande respeito pelo que fazem, traduzindo mais uma outra imagem do nosso multifacetado país.

E aqui começa a cair o mito que vim encontrar no Luxemburgo, resultado decerto de más percepções, da ignorância ou da recusa em aceitar o emigrante, pois todos eles são Portugal no Luxemburgo e Portugal é de todos eles! Sem qualquer discriminação.

Assim como o Luxemburgo também é deles. Reconheço que a integração em muitos casos não foi bem aproveitada, mas não dou como perdido o desafio de que os portugueses se devem integrar, guardando no seu coração as suas raízes, e se devem unir, exercendo a sua cidadania e participando civicamente com o objectivo de obterem uma representação política proporcional ao seu número neste país, sobretudo num momento em que um “jogo de silêncios” debate legislação constitucional, sobre emigração e ensino, onde o tão propagado “vivre ensemble” tem que ter um significado real.

E daqui sairá, ou não, a outra escala, em que Portugal e o Luxemburgo também participam, em sintonia, julgo, na maior parte dos casos, numa nova identidade europeia, hoje construída em nome de uma União (Intergovernamental) Europeia disfuncional, refém dos ricos, que perderam a noção da solidariedade, da coesão e da convergência, esquecendo a noção de comunidade dos pais fundadores, melhor entendida pelos cidadãos do que pelos governos, que recusam partilhar os riscos comuns que a pandemia e a inevitável recessão económica estão a criar, esquecendo por egoísmo que as receitas tradicionais que tentam impor à maioria dos Estados-membros – a austeridade – só destruirá a Europa, deixá-los-á sem mercados e os irá prejudicar a longo-prazo.

O tal prazo que os outros, como nós, tanto precisamos, que haveremos de pagar, como sempre tudo pagámos, com a garantia dos mortos que morreram do vírus, das vidas salvas pelo esforço dos profissionais de saúde e das medidas possíveis tomadas pelos governos através de um endividamento com enormes consequências se a nova identidade europeia não se revelar rapidamente.

Tenhamos ainda esperança na clarividência dos “líderes” e na vontade dos “povos”.

Nós já sabemos há muito tempo que temos heróis.

António Gamito

Embaixador de Portugal no Luxemburgo

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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