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O primeiro charro

Ignácio Almeida tinha este problema, não gostava nada de ficar em desvantagem, mesmo que fosse apenas numa conversa de café, entre amigos, e muita da sua aparente descontração e até mesmo desinibição era apenas uma arma que se tem revelado muito eficaz na sua secreta, sempre secreta luta contra uma enorme timidez e acima de tudo insegurança que o vem acompanhando desde longa data. Digamos que desde que se conhece.

Por esse motivo, e só por esse motivo, chegamos a tempo de ouvir uma das suas muitas histórias, verdadeiras apesar de tudo, mas que contadas por ele, no seu peculiar jeito, quase que se percebe nas entrelinhas muito do que temos vindo a desvendar de si ao longo destas páginas.

Ouviremos então a história contada por si mesmo.

“Ora por essa altura eu andava já a ler um livro que tinha por título “Viagem ao mundo da droga,” de um tal Charles Duchossoir, um Francês que contava as suas aventuras pelos meandros da droga. Fascinado por esta história verdadeira, o seu autor, mais do que se apresentando como um seviciado, vitimado pelo consumo das drogas, pelas viagens e pelas aventuras que dessas viagens viveu, apresentava-se mais como um herói do que propriamente uma vítima.

A descrição que fazia em relação ao consumo do haxixe, parecia-me a mim, mais atrativa do que medonha. Por essa altura ia confidenciando ao meu amigo Dias, a vontade de fumar desse produto, muito embora, nem eu nem ele tivéssemos a mínima ideia, de que forma, cor, ou cheiro, ele se apresentaria.

Eu sabia pelo livro, que derivava de uma planta, mas não tinha a ideia de como se pareceria quando a planta arrancada à terra levava as transformações necessárias para se tornar no dito haxixe. Por isso, ninguém melhor do que o Viki para desvendar o mistério. Trocando a coisa mais por miúdos, depois de tomarmos a decisão, porque nos achávamos preparados para tal, eu e o Dias, chamamos o Viki para um particular fora do café, não fossem as paredes terem ouvidos, e fizemos-lhe saber que queríamos comprar quinhentos escudos de haxe.

– Ok, não tem problema. Eu fumei o meu último charro há bem pouco tempo, mas amanhã trago-vos os quinhentos paus.

Como qualquer outro drogado, exigia o dinheiro à cabeça. Mas o dinheiro nem sequer nos saiu da cabeça, e muito menos à cabeça dele foi parar. Saiu de bolso para bolso, com a promessa de que nos seria entregue o produto no dia seguinte, depois do jantar, e durante a cafezada que era tomada no café lá do burgo.

Com pouca experiência nestas andanças, confiamos os quinhentos escudos ao meliante, que demoraria cerca de uma semana a aparecer, com a desculpa de que andara ocupado nas suas diversões e digressões noturnas, entre a Iodo no Porto, e a Luzimar em Viana. Mas não se esqueceu de trazer o produto que lhe exigíramos assim que lhe pusemos a vista em cima. Vinha metido dentro de um maço vazio de S G filtro, uma marca de tabaco bem popular na altura. Assegurou-nos que o produto era bem bom, e que depois de fumado lhe haveríamos de dar razão.

Não lhe demos razão, mas teríamos lhe dado um bom par de estalos, ou talvez uns pontapés, se tivesse cara e cu para isso, o que não era o caso, devido à quantidade de ossos que era mais abundante do que a carne que os circundava.

– Palhaço do caralho . . .

Dizia o Dias depois de tirar o produto de dentro do maço vazio, e de o passar pelo nariz para tirar a prova do cheiro. Não que fosse entendido na matéria, mas para haxixe haveria de ter um cheiro bem melhor do que aquela pequena quantidade de esterco seco que Viki colhera algures lá nas cortes de sua casa, ou de algum vizinho.

– Então . . .? – perguntei curioso – que se passa?

– Que se passa? Cabrao, bem poderia trazer os bois também.

E segurando a merda pela ponta dos dedos, voltou a cheirar.

– Isto é esterco . . . sorte a dele que está seco.

Dominado pela ânsia de poder experimentar pela primeira vez um charro, ainda me restava alguma esperança, e talvez o Dias estivesse enganado, afinal, tal como eu, era laico na matéria.

– Deixa lá ver… – peguei no naco pela ponta dos dedos, e na ponta dos dedos o deixei. Passei-lhe as narinas por perto, fazendo um movimento com a cabeça da direita para a esquerda, e como não estava certo de ter cheirado alguma coisa, voltei a repetir o gesto, mas agora em sentido inverso. Parei. Inclinei ligeiramente a cabeça e revirei os olhos. Estava só a pensar. Acontece-me de tempos a tempos, especialmente se não consigo chegar a uma conclusão.

Acho que tens razão…, mas, mesmo assim não sei . . . a mim não me cheira a nada.

– Está seco – aventurou o Dias – apetecia-me meter-lhe esta merda pelas goelas abaixo.

Estava assim frustrada a primeira tentativa de fumar uma ganza de haxixe, do qual, nós nem sabíamos de que cor ou cheiro ele seria, mas certamente um pedaço de esterco seco, enrolado numa mortalha, não produziria o mesmo efeito.

Um pouco desanimados, zangados até pelo arrojo do artista, ainda voltamos a passar pelo café, talvez para lhe atestar uns bons cachaços, ou como sugerira o Dias, abrir-lhe as goelas com as duas mãos e meter-lhe o produto lá bem para o fundo, quem sabe até aproveitar para levar a mão ao seu estômago e virá-lo do avesso, mas com os quinhentos escudos que lhe tínhamos dado pelo adubo bovino, já ele se tinha posto a milhas.

(O Patinho Feio – capítulo 3)

António Magalhães

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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