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O Híbrido (terceira parte)

© DR

Junto ao Museu Abade de Baçal, um novo achamento de covas, agora estávamos mais habituados à violência dos esqueletos, já tinha visto um pedaço aqui, ou um pedaço ali, em cemitérios, onde me senti inseguro e violentado. No meio da rua, contactamos com os esqueletos de um modo mundano, são como o ruído da caruma quando arranha o silêncio. – Vivei e rasgai os horizontes, dizem com a sua surdez, implorando para que exploremos horizontes.

No edifício do museu, a pintura de Francisco Manuel Alves sentado no seu enorme cadeirão, daqueles de onde brotam conversas sérias. A pintura está envolta num círculo de volumes da sua biblioteca, um tinteiro dourado na penumbra faz uma cabriola no claro-escuro da tela, e um livro aberto como asas, muito branco desafia a poeira e desarrumo geral, as estelas descobertas por arados, estão muito sérias para nos aborrecer com interrogações e questões; o que estão ali a fazer, não têm ideia. A pintura tem uma indelével e nostálgica poeira na composição. Francisco Manuel Alves e os esqueletos têm uma coisa em comum, estão mortos, mas não lhes podemos negar a humanidade, seria como arrancar do chão a nossa sombra. Podia falar de assuntos de grande importância, mas para ser honesto, era de dentes que agora eu quero falar.

Esqueleto com dentição completa, morreu novo, de moléstia ou morte violenta. Os dentes do Abade, não fiquem ofendidos, se começarmos assim bruscamente, sofreram um declínio dentário inexorável. Ao percorrer a minha memória vou buscar uma passagem dos seus diários. Pegando no cálamo, o clérigo e arqueólogo amador, abriu algumas entradas no seu diário no qual pintou as suas crises hipocondríacas:

“Caiu-me a primeira mó do lado de cima, a segunda a contar do dente canino, em Dezembro de 1883, ou seja, aos 18 anos. Caiu aos bocados, pouco a pouco, sem nunca me doer, porque o sangue brotava naturalmente das gengivas e assim desabafavam. Tive de tirar a ferros a segunda mó, por me martirizar com dores durante dois anos, a qual exactamente em correspondência à primeira, mas do lado de baixo, em Janeiro de 1893, ou seja, quando tinha 28 anos. Desta vez as gengivas não deitavam sangue. Caiu-me a terceira mó, sem nunca me doer a 1 de Setembro de 1911. Era a última do maxilar superior, lado direito. Caiu-me o dente canino do maxilar inferior, lado esquerdo, sem nunca me doer, a 12 de Agosto de 1917. Desta vez, isto é 1893, as gengivas tinham de tempos a tempos deitando sangue e a este desabafo atribuo carência de dor. Havia três meses que me começara a abanar. Guardo numa caixinha os dentes que me vão caindo, apenas faltando dois, porque o primeiro me caiu aos pedaços e o segundo perdeu-se-me na mudança de Mairos para Baçal.”

Deixemos as caixas para guardar dentes cariados de abades e de esqueletos entrepolados com a terra, cascabulhos impelidos para os laboratórios por uma alteração ao truísmo bíblico, da terra para a caixa do arquivo, e não do pó para o pó. Como os dentes desamparados são como reticencias de um texto perdido, a murmurar algo em código cujo significado transcendia-me, e com essas reticências e a missão completa aos vasculhar os leixões de ossadas que se encontraram durante a noite fomos por aí como dois baldes que se lançam ao negro poço da noite, e retomamos para a Praça da Sé via Rua dos Combatentes da Grande Guerra agarrados aos nossos casacos e sobretudos sob a noite fria. Foi quando tivemos que ajustar os nossos ouvidos aos passos e voz que nos interrompia a caminhada, seria homem ou espírito que se despegou dos esqueletos? Regressados aos descaminhos, tomamos contacto com o Híbrido. Aquele a quem chamaríamos Híbrido posteriormente, e que tento recriar, embora seja mais um conceito do que um homem de carne e osso. O Híbrido observava-nos do outro lado da rua, atrás da nossa sandice e lazer, um homem de boina, sobrecasaca preta, com uma peça desengomada e desfraldada de camisa branca, que fazia uma curva na bojuda barriga por comer muito pão, as pernas ao princípio robustas, enfraqueciam abaixo do joelho por falta de ginástica. Escondia-se a meia luz, ao lado do feixe do poste de iluminação, hesitava como se fosse dar-nos uma má notícia ou pintar alguma tropelia.

O homem increpado disse: O que vocês querem!?

Não queremos nada, mas pode-nos dizer, você, o que quer de nós!? Andámos a ver os esqueletos que vão por estas covas. Estão na parada do Castelo e aqui em baixo encontramos mais.

O primeiro bastou para que outros aparecessem no caminho. Você esta aí na sombra, como um guarda nocturno, trabalha no Museu? Levei a mão à barba receoso do arguir do indivíduo. Sou um moço de coração dado e ânimo forte para os estudos, mas fora do campus não sei desembaraçar-me com maltrapilhos. Desafiados para falar, afiava como podia a língua.

       – Chegue-se mais perto, por favor.

       – Fico na sombra e vossemecês estão debaixo do lampião. Que querem dos ossos? Vão leva-los para casa?

       – Fomos dar uma volta e agora aprendemos um pouco da história da cidade àconta destes esqueletos. Quem é o senhor?

– Sou daqui, e vivo junto do rio e sabem que mais, o mando parece acicatar o desmando sempre que este é contrariado nos seus desígnios ou ferido no seu orgulho. Fiquei atónico com o dilema, pois um conundrum destes precisava de uma introdução ao menos. O homem estaria a queixar-se da justiça!? Não ficamos a saber quem era o homem, que mais tarde ficou conhecido como o Híbrido, talvez um indivíduo com um fardo político que só ele come, saibam, pois, que nos negócios dos homens muita novidade causa dúvidas porque acorda os homens do seu sono. Ficamos curiosamente a absorver os pensamentos lúridos do Híbrido.

O Ricardo interrompeu o entremez a talho de foice. – Somos estudantes do Instituto, pensa que nos assusta, você quem é?

– Eu sou o que sou, e vocês estudantes, que aqui andam a vasculhar a história, e digo-vos, a história é um grande não, e a maneira como o superamos, vocês andam a ver esqueletos, a pensar de onde vieram, não é!

(continua)

Paulo Seara

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