De que está à procura ?

Colunistas

O Híbrido (segunda parte)

© DR

Adiante, depois de fazer um número trôpego pelas ameias como dois malucos, e não pudermos mais avançar devido ao breu que manaciava dos cantos menos iluminado, descemos das ameias, e atravessamos por entre aquelas casas, que recordo com um não sei quê , mas que me recorda uma imagem que ao se tentar materializar, é apagada por uma borracha e assim aquelas casas dentro da cerca velha de Bragança arrastadas de palidez em palidez enquanto a cal não é devorada pela lepra do cimento, são transformadas em fiapos. Pensava numa fotografia com mais de 100 anos que vi numa exposição à qual quase ninguém vai, mas todos comentam como se tivessem visitado. As pessoas têm medo de entrar, ora bem, é um artista que se confessa, os visitantes não são obrigados a expor nada. Isto da cultura secular e urbana ainda não entrou aqui a bem, é como tentar estacionar um automóvel numa rua estreita e num lugar apertado; e o artista está a ser observado. Meu Deus, ele vai falar, ele vai falhar, sim, falhar, e falhar outra vez e falhar melhor. O saco de água do artista da varanda também falhou.

Ao pisar o chão da cidadela, depois da meditativa ronda pelas ameias do castelo, disse que me recordava de ter visto uma foto da mesma praça onde existia um grande barracão em forma de U, a praça de armas do velho quartel, aqui se aquartelou ao que parece o Sexto Grupo de Metralhadoras criado em 1911 em Bragança e extinto em 1926, e para não dizer que beneficio um corpo castrense em relação ao outro, como quem fala de clubes de futebol, também existiu na cidade, mas com instalações no Forte São João de Deus, o Batalhão de Caçadores 3, extinto em 1975, pelo Conselho da Revolução, o que deve ter causado azia aos vários lados das barricadas ideológicas durante o estio revolucionário, que em Bragança não passou de um degelo de curta duração.

Hoje a cidade não tem tropa; nem um, nem outro monte castrense sobrevivem. Pois, foi assim a modernidade e o esquema da quadrícula não precisa de tanta tropa quando a televisão chega a todo o lado, e de todas as maneiras para formar os soldados do mercado e guerreiros de teclado em riste. Entremez, enquanto explanava vagarosamente, foi então que reparei perto de mim em alguns montes de terra, escavados recentemente, não teria sido obra dos serviços de águas e saneamento? Não, eram covas rectangulares junto das paredes de uma igreja que se encontra ao lado da Domus Municipalis, não sei que orago tem essa igreja, mas a sua graça é conhecida como Igreja de Santa Maria Maior. Certo dia estive debaixo da sua nave e cheirava claramente a igreja: água benta e violetas, e uma igreja assim tão antiga tem sempre à volta covas com esqueletos, como também os pode ter dentro, vão dizer os juristas. Quando visitei o templo estava numa fase em que não tirava o boné nem me benzia, há muitos anos, sentia um orgulho ateu e económica agonia, mas o altar com o seu pasto de ouro deslumbrava, e os frontões onde tinham esculpido parreiras morriam dentro do meu peito por vinho que aquelas colunas prometiam para toda a eternidade.

Tínhamos encontrado uma escavação arqueológica, e esqueletos, as almas, rodeavam a igreja como um coro, uma congregação que não arreda pé, encontrava-se enterrada ali, quase a grelar na superfície do passeio como batatas, separados por pedras e terra dos mortais e pela alvenaria e a talha dourada do outro lado da parede, longe dos apaniguados, e da gente de posses que pagou para não perder muito tempo na fila quando chegar o dia do julgamento final e reificou as suas capelas de família.

Os preteridos do outro lado, contentar-se-iam com o rabo da fila, observavam de órbitas vazias o olhar clínico dos arqueólogos, as camadas de terra e pedra deram lugar a um esplendoroso céu azul. Cada buraco uma história de ossos descarnados, e almas que já se encontravam na estratoesfera, e depois no cerne da luz das estrelas mais distante e no meio de tantos procedimentos depois de somar todas as provas, cada enigmático esqueleto tinha uma segunda vida com a teima do que se ia descobrindo e completando numa lista à moda de Emmanuel Kant, onde se faziam vistos em diversas categorias para chegar à verdade: sexo, idade, saúde, dieta, ossadas completas ou incompletas, levou alguma coisa consigo, duas moedas para pagar ao barqueiro, tinha seis dedos em vez de cinco nas mãos? Mas não seria este acto, um sacrilégio e para além de antiético, não se daria o caso de se desenterrar algum diabo ou moléstia? Bragança tinha antídoto para isso? Os diabos do submundo e as moléstias podiam conjugar forcas para impor o jugo ou a doença nos homens.

Depois de perorar, fomos pela rua da porta principal, e ao descer decidimos sapar a rua procurando mais covas de esqueletos sem pudores cenobitas. Atravessamos por aquelas ruas da cidadela brigantina arrastadas de palidez que as mumificava, a demência que as paralisava, e a juventude atrás da história, juventude e histórias, um conceito que dá pano para mangas nesta região, em primeiro lugar porque a juventude fica aborrecida e derrogatória quando se fala de história, mas quando essa juventude maioritária é substituída pela juventude maioral, começam as tricas palacianas, e os encantamentos liberais ou os safanões autoritários. Para evitar sermos bombardeados pelo mirone da Rua Trindade Coelho fomos ao invés pela Rua Serpa Pinto, que pertence à  minha mitologia e historiografia pessoal. Não há vila ou cidade sem uma Serpa Pinto, e Capelo Ivens, é como o verde e o vermelho do pendão nacional, não o conseguimos imaginar de outra cor. Durante alguns metros não se observou mais nenhuma exumação, mas pensando bem, também não existia nenhuma igreja por perto. Descemos a delgada rua Serpa Pinto, sem perigos e sem acontecimentos.

(continua)

Paulo Seara

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA