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O Híbrido (quarta parte)

© DR

Todos nós estamos juntos numa causa maior em todas as terras e todos os lugares. E os esqueletos podem ser estudados hoje, e ser reconstruídos, e temos as análises de ADN para conhecer tudo sobre todos, até ao fim da história, e assim ficamos a saber que cada cara e cada etnia tem um traço físico característico. Começou então a falar da pseudociencia chamada frenologia.

Do seu palco improvisado à beira do passeio, perorou, perorou durante alguns minutos até começar a falar em espanhol, francês e alemão, palavras que existiam em comum no indo-europeu. O homem era poliglota, esteve a trabalhar em vários países. Mãe, pai, pão, cerveja, e os números de um até dez. Dava gosto ouvir, apesar de sentirmos que o Híbrido se encontrava com uma grande bebedeira. Mas qualquer coisa aconteceu quando disse os números de um a dez em alemão, depois disso a sua face mudou, a sua garganta vocalizou apoiada nos ombros e no cachão que a sua mão levantava como uma onda ameaçadora – E tu aí de óculos e boina com sobretudo, o teu nariz é de judeu, tu és descendente de judeus. E as frases e números em alemão regressaram em cascata. De todos os idiomas que o Híbrido falava, o alemão tinha alterado o seu estado de espírito como se estivesse a ouvir vozes. O Híbrido não se calava, um palimpsesto de sistemas começava a girar; metia os Gulags nos Campos de Concentração e os Campos de Concentração nos Gulags. Eu sentia-me aturdido, com aquelas palavras. Eu principiara por falar de esqueletos e história e do programa polis, e aquele sinistro homem com aquela lúrida provocação a chamar-me judeu, por causa do meu nariz torto.

O Ricardo estava em silêncio, observava um homem calcificado, consumido pela sua ira, mandão, que exigia a nossa obediência a cada sílaba da doida récita. Era um fulano de maças duras, talvez funcionário público, barba rala, com geada na cara. Um homem que se senta num café na mesa dos fundos, que nunca se vê, mas está sempre lá, a maquinar em alguma coisa ou algum sistema. Nunca se lhe vê a subir para a boca o copo de cerveja. Temos que o observar de modo discreto, nunca por muito tempo. O seu olhar não sai do território da mesa onde assentou arraiais, onde não toca ou gesticula que vai tocar no copo de 330 ml, que reaparece sempre cheio, embora nunca se observe o homem a despejar o copo. Ora bem, duas coisas não podem acontecer ao mesmo tempo, pensa Ricardo de modo racional. Depois da cerveja, aparece o uísque, sem água ou gelo, e como não está para brincadeiras, por fim o vodca. É assim como ele bebe, e o que bebe, e nunca fica aparentemente bêbedo. Sem prazer ou ódio, ele bebe para dominar aquele espaço, e está a nossa frente pelo mesmo motivo. Não o vimos sair da mesa, nem para mijar, não o vimos pagar as bebidas. Estranha omnipresença. E agora olha para nós, e vai desencadear alguma coisa má com os seus pensamentos.

O Híbrido observa, é petulante, mas não o mostra, porque vive numa terra pequena. Ele cronometra, verifica, arquiva cada pessoa no café. Debaixo da gabarbine guarda uma lista onde toma nota dos clientes mais calmos ou mais agitados. Há duetos de mulheres a conversar sobre jantares de sábado e dos clubes da moda e presentes de Natal a meio de um pastel de nata, com uma quiche lorraine com salada de rúcula e um pingo. Elas também estão a ser observadas. O Híbrido sente-se excitado e confuso, confusão que lhe entra nas orelhas coradas, quando são mulheres mais novas, mas só lhe interessa as mulheres que fiquem nos cantos do café que sejam de fora da cidade, para lhes meter o jugo de carreiro no lombo e levar as juvenis aos arrabaldes e visitar as aldeias paradas no tempo ou o meditar enquanto se observa o manto da urze do parque natural.

Ele escuta-as, compreende os seus sistemas, e as como as consolar, guarda tudo na sua samarra e nos ray ban, e não revela o jogo, está numa missão, acredita que os dias estão contados, mas fica quieto apesar da sua loucura de cão pastor – gostaria de avisar toda a gente, mas quem iria compreender o seu sistema a maquinar como um raio catódico. Ao seu lado dois homens despacham salgadinhos e vinho, e partem para uma partida de bilhar. Cautelosos e polidos, dobram os guardanapos como se tivesse um comportamento obsessivo compulsivo. Medrosos, dobram o guardanapo com receio que este esguiche tinta ou solte um grito. Estão a irritar o Híbrido, e sabem-no secretamente, os seus Diários Económicos são testemunhas disso, a economia não anda bem, mas o olhar daquele homem dissolve as mentiras que poluem as manchas de texto do jornal. É a última arma da censura, aquele olhar intimidador, e, ao mesmo tempo, tão plácido. Que nos apetece absorver nele como água morna derramada pelo nosso corpo.

Este é um homem muito duro, a sua mão direita é desproporcional a esquerda, mas evitem olhar para o seu pulso. Controla o olhar, como aquela senhora loura que trabalha no hospital e veio aqui para trocar um romance do Paulo Coelho por um da Isabel Stilwell enquanto fala de medicação para enfartes de miocárdio. A mão flácida, uma deficiência de nascimento, fascina-a, mas este homem é de uma terra pequena, e ela não quer que se fale dela e dele, nas costas dela. Essa mão lânguida é um sinal proibido, evita olhar da mão para a cara do homem, é uma armadilha. Alguém que olhe para aquele pulso pode ficar muito mal tratado. Este é um homem híbrido, acabou de sair de uma linhagem de homens das memórias do subsolo de Dostoievski que arrastam a sua placenta. Conhece como são dados os pontos e nós no mundo, de modo geral é um estratega que estudou uns livros, tem amigos em pontos-chave nas associações profissionais e comerciais, mas passa os Domingos em Bragança com a sua bilis de oficial administrativo abandonado nos estertores da estiagem, ou a orar maldições para o frio como um raio catódico – maldições para a EDP. Os neurónios queimaram-se. Se fosse droga ainda compreendia.

Esquecido de si próprio durante a conversa, o Híbrido empinocava a voz que fazia ecos junto à berma da rua, latia na rua como um cachorro abandonado. Mas apesar do longo sermão aos repelões, e aquela bebedeira não ser especialmente má, faltava-lhe dizer para onde queria ir. Sentindo-se regalado com a mistela mefistofélica que gorgolejava, atanazando-nos com diletancias e filofascismo; os roncos em alemão que erguem a crina de cavalo que não foi domesticado; com significados políticos e um nariz semita; a coisa não andava para a frente. Miseravelmente esta espécie de homem teve a sorte de ser bafejado por uma boa educação. O Híbrido empancou os seus 32 bits por segundo. Entao, como uma prece que se murmura, o Híbrido debate-se com um desafio maior, tocou nas partes baixas como quem acaricia um vidro no qual se pode cortar um dedo, nós olhamos para o lado, a pensar no que vai dar, queremos sair dali rápido, mas ele com o seu ar autoritário e a mão flácida não dá autorização, abre o fecho das calcas e retira o seu pénis semi erecto. A gente ouve as merdas dele, mas não lhe daremos liberdade para se masturbar. Começa então como uma serpentina a nascer um jacto de urina directo a nós, uma mina de mijo irrompe para a via pública e vai salpicar a terra revolvida das covas dos esqueletos, enquanto mija, desenvolve uma girândola como um fogo preso e grau a grau guia o mijo, encana-o contra a parede do museu que fica borrifado com a amónia de líquido amarelo.

Dá um peido no fim, é o nosso sinal para sair dali.

Fim  

Dundee, 27/4/2023

Paulo Seara

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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