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O Híbrido (primeira parte)

© DR

Ainda te recordas do Híbrido? Quem era o Híbrido!?

Para o saber temos que regressar ao passado e resolver um puzzle de olhos esbugalhados, ainda que isso seja hoje apenas um indelével exercício que tento recriar.

Uma quietude velha e soalheira, pode ser fatal quando se vive numa cidade do Portugal profundo, envolve-nos um lençol de desespero pegajoso que emana do húmus humano, que até dá vontade de partir ou de morrer. Os bares e os cafés aqui não são refúgios, mas celas frígidas, e ao fim de uns quartos de hora, aborrecidos, e observados por olhares como facas decidimos que era hora de sair e arejar, só mesmo o ar frio e que nos invade soprado da meseta nesta cidade perto da raia, para dissipar o que nos rilha por dentro.

Saímos, melhor acompanhado do que sozinho, duas carcaças passeavam pelas ameias, já tínhamos galgado a Rua dos Combatentes da Grande Guerra, e outra rua com passeios aos socalcos, pedrinhas roladas e polidas pelo tempo, uma alvenaria de buracos que aguardam o momento para fracturar tornozelos de transeuntes distraídos, de nome Rua Trindade Coelho, homenagem ao escritor talvez bipolar, suicida-se no ano de 1908 em Lisboa, de tendência naturalista, com idealismo combateu o país terroso abanando-lhe os alicerces analfabetos, a falta de salubridade e o cheiro a fumeiro e pinho verde que se colava aos corpos, velhos estagnados e jovens que chegaram demasiados velhos ao fascismo – que tempos, andávamos bem tristes, enquanto escalávamos a ladeira, as nossas perguntas podiam ser ampliadas por todo o espaço do mundo. Antes da Rua Trindade Coelho as nossas órbitas rondaram o obelisco ao monumento aos mortos da grande guerra como os dois corvos de Sao Vicente, o monumento era um modo de adoçar o desastre, prolongar lutos dos filhos desaparecidos e tentar fazer a ponte com a proclamação heroica pelo reino e pelo príncipe, contra os jacobinos como se dizia, pelo tenente-general Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda. Antes de descrever este Sepúlveda, analisei um por um, os sobrenomes dos mortos procurando algum ascendente perdido nas lamas da Flandres. Quanto ao Sepúlveda, consta que tinha uma índole turbulenta, o que acabou em tragédia: uma rude discussão com um colega de regimento, o escocês John MacDonell, terminou em homicídio do Escoto.

Foi por causa de saias, um jogo de cartas, dívidas, política; não foi obviamente por causa de futebol. O destino, porém, teve um plano para ele, refugiado no Brasil refez a vida, e também havia um plano para nós, apesar de surpreendidos e bombardeados com um saco de água. São as vicissitudes dos maus caminhos, talvez aquela pessoa irritadiça gostasse de atirar sacos de água como passatempo noturno aos estudantes que sustentavam a cidade que apodrecia à  beira rio.

Mais acima, foi nesta rua que encontrei na Fundação Os Nossos Livros, uma epístola de Almeida Garrett, publicada há 200 anos em Londres, Portugal na Balança da Europa. Recebi uma menção honrosa por falar deste livro durante um ou dois parágrafos, não sei em que ensaio sobre dramaturgia no final do século das luzes e os pré-românticos.

O livro ainda está longe de ter perdido a actualidade, e servir-nos-a de consolo para os descaminhos da Europa dos dias de hoje, e especialmente para o pequeno Portugal. Por aquela rua acima, também andei em descaminhos, não sei se estaria embriagado, o certo é que se nos colou ao corpo uma canção dos Mão  Morta, que era também uma dança aos pecados preteridos e futuros que abonavam nas imediações dessas ruas, e que era necessário exorcizar. E o carmo saía assim das gargantas: “abandonada/ à beira rio/ pela calada/ da noite/ a cidade… apodrece”. Era um voo para pintar o céu de azul, embora a poesia fosse tenebrosa, a esperança é como o sal, não alimenta, mas dá sabor ao pão, ouvi dizer. Estávamos nesse voo quando fomos interrompidos a má-fé, que foi que aconteceu?

Fomos interrompidos por um saco de água que nos atingiu gravemente a cantoria, vindo do alto de um terceiro andar de um prédio semidevoluto, branco de cal leprosa e varandas de antigas madeiras como pernas esqueléticas que metiam dó de olhar, o apodrecimento é afinal verdadeiro, com uma carga pronta para lançar aos incautos, basta um gesto e alçar a mercadoria sobre a rua, como um “água-vai” medievo. Quando regresso a este momento é como uma imagem da acintosa mão traiçoeira que nos ataca pelas costas, uma mão capaz de fazer aparecer um estendal de impropérios sinistros. Amigos, é este o país que temos.

Porfiadamente cada um descobria o seu caminho, arrastando a sua pedra que o tempo trata de polir; sapiens, homo sapiens à espera do tempo que venha. E onde houver tempo, como aos frutos, haveremos de os cortar, e de colher como uma vindima. Ao longo do contorno das muralhas, depois de ultrapassar a Porta de Santo António que sempre que me relembro exala um cheiro de mausoléu de mijo como um manjerico podre, por ali os pirilampos das iluminárias explodiam os seus pequenos cachos, desinteressados do que se passa dentro do caco do clube dos solitários, iluminavam cada esquina por onde os gatos miam, para dar decência e urbanidade a cidade.

A cidade que vês é apenas uma epiderme, porque existe outra debaixo dos teus pés, as suas entranhas falam em muitas línguas, mas só podes pertencer a essa cidade se fores um fantasma. Por enquanto estás vivo, e isso é que importa, o molde do teu positivo está no mundo, podes até parecer que te sintas nu, mas não és o único, mesmo quando dizes que não fazes nada correcto, e nada bate certo, como diz a rima de certa canção ou quando vais para pintar o céu de azul, e descobres que essa ideia não é original, algo maior já fez essa coreografia.

(continua)

Paulo Seara

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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