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Memórias de uma missão à Turquia

2016. Istambul. O maior ponteiro do relógio cavalga durante 165 minutos. Saio do avião já em Ancara, capital da Turquia. Ainda no aeroporto, dois ecrãs colados passavam imagens antagónicas, enquanto as filas de frenéticos passageiros se moviam como um cardume. Pelo da esquerda soube que, naquele 15 de Maio, o Besiktas, um clube de Istambul, acabara de sagrar-se campeão pela 14.ª vez na sua história. No da direita, a poucos centímetros da felicidade dos adeptos, um canal local noticiava a explosão de uma bomba. Resultado: 16 mortos. A alegria de alguns contrastava com o peso dos rostos dos outros. A dualidade do sentimento do povo turco revelou-se-me naqueles primeiros segundos da minha missão oficial como eurodeputada à Turquia.

No dia seguinte, após ter passado pelo trânsito caótico da capital e já acompanhada pelos também eurodeputados Arne Lietz (Alemanha) e Marietje Schaake (Holanda), reunimo-nos com dois membros da Delegação da União Europeia na Turquia: o conselheiro político Ireneusz Fidos e o conselheiro dos assuntos internos, Kasia Lach. Tivemos alguns debates muito negativos sobre o uso da liberdade de expressão e as relações com os média. Havia uma clara discrepância entre a Constituição Turca, a Lei, e as práticas do governo. Exemplo disso foram as ordens de prisão para quem insultasse o presidente, membros do governo ou as suas famílias. Outra limitação era a restrição de uso da Internet. A justificação era a segurança. A consequência deste acto foi um apagão dos média, pondo em causa a legalidade das suas acções pelo governo. Todas estas questões deixaram-me apreensiva para as reuniões que se seguiriam.

Durante os dois dias em que permanecemos em Ancara, estivemos reunidos com onze ONG focadas nos Direitos Humanos. A impunidade, o desrespeito pelo Estado de Direito e a liberdade de expressão revelaram-se como as maiores preocupações destas organizações. “Centenas de mortes de cidadãos não são investigadas, assim como muitos casos de violação dos direitos das crianças e das mulheres”, afirmou um dos representantes. Alertaram-nos ainda para os centros de detenção informais que foram estabelecidos, onde homens e mulheres eram torturados, e a criação de um órgão de supervisão dos direitos humanos sob a alçada do governo, que servia apenas para mascarar os casos de impunidade dos próprios serviços judiciais.

No último dia voltámos a Istambul, desta feita para mais uma ronda de reuniões com algumas ONG, incluindo a Amnistia Internacional, e com entidades oficiais e grupos parlamentares. Na perspectiva do governo e da maioria dos parlamentares, a situação no Sudeste (no território curdo turco) tinha que ser combatida, alegando tratar-se de terroristas que estavam a pôr em causa a segurança do país.

Soubemos, também, que no parlamento turco foi criada uma Comissão para a Investigação sobre os Direitos Humanos. O então responsável por esta comissão, Mustafa Yeneroglu, afirmou ser muito difícil proteger a democracia e a liberdade quando se tem terrorismo dentro do país. Daí ser necessário controlar a informação e proibir os movimentos curdos. Confirmaram-se as indicações que nos foram dadas pelos conselheiros da Delegação da União Europeia na Turquia.

Num dos extremos de uma mesa oval, Mustafa Yeneroglu frisou diversas vezes que “a questão dos refugiados não era apenas um problema turco”. E tinha razão. A Comissão para a Investigação sobre os Direitos Humanos garantiu à nossa delegação que identificavam, no terreno, as necessidades das pessoas, que todos os direitos estavam a ser respeitados e que eram os turcos aqueles que mais ajudavam os refugiados.

Estivemos ainda com Mehmet Nihat, o provedor de justiça, que afirmou que o seu trabalho era independente e regido pela transparência. O provedor garantiu-nos ainda que as pessoas não eram discriminadas, “porque isso seria um crime e na Turquia a separação de poderes é muito clara”.

Durante estes encontros, estivemos sempre sob grande escolta policial. Por vezes, talvez numa tentativa de intimidação, as armas das autoridades estiveram semi-erguidas na direcção da nossa delegação. No final da missão, viemos a descobrir que tinha sido dado um guião a vários deputados turcos com a nossa agenda e com orientações claras para as suas respostas às nossas perguntas. Um desses documentos foi entregue ao deputado alemão.

A caminho do aeroporto, na ponte Bósforo, um taxista ofereceu-nos trufas de chocolate turcas. A bondade do condutor chocava com a desconfiança da eurodeputada holandesa. O alemão, acompanhando a recusa da sua colega, fez com a cabeça um sinal negativo. Após as duas recusas, avancei e aceitei o doce naquela ponte que liga o lado europeu ao lado asiático de Istambul.

O que concluí durante aqueles dias foi que a Turquia não tinha as condições exigíveis para ser um parceiro europeu credível. Era necessário, também, que os programas com o país fossem revistos, particularmente em relação aos refugiados. Naquele momento, temi que o acordo feito com a União Europeia servisse para que o governo turco nos reencaminhasse os refugiados curdos, livrando-se deles. Confesso que, na altura, cheguei à Turquia com alguma esperança. Voltei a 18 de Maio com réstias de uma expectativa de mudança do regime de Erdoğan.

A história é hoje bem-sabida. Dois meses depois, a tentativa de golpe de estado de 15 de Julho veio fortalecer a posição do governo turco, condenando milhares de inocentes, tornando-se numa autocracia que esmaga todos os que pensam de forma diferente.

Lembrei-me desta missão por via do debate que teve lugar na última sessão plenária que se realizou em Estrasburgo, em que o Parlamento Europeu discutiu o Relatório de 2018 relativo à Turquia. Se na altura as condições dos direitos humanos não eram as melhores, hoje o cenário não mudou, muito pelo contrário.

A purga política é conhecida. Temos cerca de 150 mil detenções, 4 mil juízes demitidos, mais de 160 plataformas de meios de comunicação fechadas e mais de 114 mil websites bloqueados. Por outro lado, é preciso pensar que são também estas pessoas que contam connosco. A situação, de facto, é má. Bastante má. É por isso mesmo que esta União deverá ser uma ponte de diálogo através da diplomacia. Cabe-nos apoiar a construção de mecanismos eficientes que protejam e promovam os direitos humanos e a democracia em países terceiros. Nunca é demais lembrar que o nosso apoio à sociedade civil é fundamental.

 

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