Estive recentemente em Berlim, cidade que escolhemos para passar uma semana em família. Não ia a Berlim, cidade que adorava, desde há uns bons 15 anos. A monumentalidade fabulosa, a generosidade das avenidas amplas e airosas, a inesgotável oferta cultural para todos os gostos, mantêm-se em todo o seu esplendor. Mas o seu encanto principal, o seu ADN, que tem sempre que ver essencialmente com aquilo que dá alma ao que quer que seja, as pessoas, desapareceu.
Tive dias de calcorrear mais de 20 quilómetros pelos 4 cantos da cidade, não só em Berlim-Mitte, onde estão os principais destinos museológicos e monumentais, mas nos bairros imediatamente circundantes também. As pessoas alegres, airosas, sorridentes, prestáveis, amáveis que antes se viam por toda a parte, quer nas ruas, quer a servir em cafés, esplanadas, restaurantes, taxis e hotéis, transformaram-se em ogres antipáticos. Um exemplo: pedi uma cerveja num kiosk do Centro de Congressos. A empregada (alemã) entregou-a fechada com cápsula. Pedi como é óbvio que abrisse a cerveja, ou me emprestasse um tira-cápsulas. Disse-me que não tinha. Pergunto como se lembram de vender bebidas com cápsula, sem ter forma de as abrir. Pôs-se a gritar comigo, não reproduzo o diálogo! Impensável há 10 anos atrás.
As generalizações são sempre odiosas e injustas, mas a verdade é que se me pedissem para destacar com uma recomendação elogiosa um único funcionário que fosse, nas largas dezenas de interações com pessoas que tive, e que me prestaram serviços, deram informações ou venderam alguma coisa, o único (mesmo) nesses 10 dias seria o italiano que nos atendeu no nosso restaurante italiano preferido em Unter den Linden.
O Moedas (Kai Wagner) à frente dos destinos de Berlim, eleito no início de 2023, é da direita democrática (CDU), que chega ao poder ao fim de 22 anos! Tem pela frente uma tarefa hercúlea, pois o trabalho que os socialistas fizeram ao longo das duas últimas décadas foi miserável. A Berlim que conheci era uma cidade limpíssima, organizada, de jardins (muitos) irrepreensivelmente cuidados. Hoje é uma cidade suja, descuidada, chocantemente grafitada, com dezenas e dezenas de desabrigados a viver nas ruas do centro (em tendas de campismo montadas debaixo de pontes e viadutos). O grosso deles, são alemães que desistiram. De trabalhar, de lutar, de construir algo na vida. Roubaram-lhes a esperança, castraram-lhes os valores que distinguiam os alemães de quase todo o resto dos europeus: disciplina, ética de trabalho, organização, orgulho em fazer as coisas bem, ambição. Ficou a paixão pela cerveja…
Numa loja ao lado da Ilha dos Museus (Museumsinsel) um anúncio exposto na montra oferecia um emprego em part-time (meia jornada). Tirei foto. Salário de 512 euros. Não vou dar exemplos daquilo que 512 euros brutos compram em Berlim (muitíssimo pouco), mas garanto que nenhum dos miseráveis que vivem debaixo da ponte, e recebem um subsídio de sobrevivência (logo torrado em álcool e fentanyl, enquanto der) quase equivalente a esse montante, nunca se sentirão estimulados a trabalhar.
Entretanto uma política de emigração generosa (por pura necessidade, caso contrário os serviços colapsavam, pois os alemães já não querem trabalhar em determinadas profissões), mas mal desenhada e estruturada, e pior implementada coloca uma pressão brutal para pôr os emigrantes a trabalhar mal chegam, muitos sem qualquer formação, e sem falar idiomas. Hoje até o famoso Hotel Adlon, junto às portas de Brandenburgo, tem que contratar gente para servir que há 10 anos atrás nem na pensão da Ti Adelina teria a mínima chance de estar a trabalhar, sem passarem previamente por extensos cursos de formação, e fazerem estágios práticos.
Berlim é hoje um pouco o espelho da Alemanha. Visitando-a, vivendo durante uns dias uma vida de bairro (e não de hotel) como fiz, e lendo a imprensa local (graças ao meu paizinho, que me pôs a estudar no Colégio Alemão), fica-se a entender como o Chega alemão (Alternative für Deutschland, AfD) tem vindo a crescer como a espuma quer a nível regional (em Berlim tem 10% dos votos, a nível nacional estima-se que ultrapassem os 20%).
O discurso “chegófilo”, lá como cá, sai da mesmissima cassete, assente sobretudo na fobia contra os emigrantes, sem os quais a economia colapsava. Em Portugal também já temos mais de 600.000 estrangeiros a contribuir para o financiamento da Segurança Social, eram pouco mais de 100.000 há 10 anos atrás.
O que esta situação no entanto está a fazer a Berlim é afastar o turismo com dinheiro para gastar, e consequentemente a colocar o comércio tradicional de qualidade, ainda não totalmente recuperado do covid-19, sob pressão. As famosas Galerias Lafayette, cuja primeira loja aberta no estrangeiro foi precisamente em Berlim, anunciou na semana em que lá estive a intenção de fechar a emblemática loja da Friedrichstrasse, um duro golpe para a cidade pelo que o ato tem de simbólico. Vão reforçar a presença na Ásia…
A Alemanha, ainda há bem pouco tempo o motor da Europa (hoje assemelha-se a um motor gripado) e vários países europeus terão eleições importantes em 2024. É fundamental que se recuperem os valores tradicionais da nossa cultura e civilização, e se ponha ordem nos focos de tensão que estão a fazer crescer o descontentamento entre os cidadãos europeus.
Não deixa de ser interessante (preocupante) verificar que a Alemanha tem um problema muito semelhante ao nosso na questão da falta de habitação acessível (grande artigo de capa no insuspeito Spiegel de 7.10.2023), um dos problemas na sociedade que mais estimula o crescimento da direita, vista como a que melhor pode resolver o problema. Aqui em Portugal, o problema da monumental falta de habitação acessível para os portugueses foi ocupado reivindicativamente pela esquerda (por isso escorraçaram os representantes do Chega na manifestação recente), a da geringonça, que apoia o PS há 8 anos no Governo, sem que nada tenha sido feito nesta área. Ou seja, os campeões em manifestações de rua, são os campeões também em incompetência para resolver os problemas. Vai ser tudo mais do mesmo. Esperemos sentados para ver.
Aquilo que ficou desta visita a Berlim, provavelmente a última em vida (a não ser que a minha neta me peça, afinal de contas é a cidade onde passou o primeiro aniversário), é a imagem de uma Alemanha fragilizada e assoberbada com a avalanche de imigração sem preparação, que generosamente absorveram. E não é bom que aquele que sempre foi o motor propulsor da Europa, e o seu principal financiador, esteja a passar por problemas, e à beira de uma recessão com consequências imprevisíveis, a não ser o fortalecimento da direita muscalada “chegófila”.
Estejamos atentos e preocupados. E tenhamos juízo, os envelopes financeiros num montante total de 45 mil milhões de euros do PRR e do Portugal 2030 são provavelmente os últimos “beijinhos” dos contribuintes europeus para a nossa economia e felicidade. Se este dinheiro for estouvadamente estourado, e não aproveitado para investir em indústrias e setores que gerem riqueza, teremos perdido a última oportunidade de evitar que continuemos a escorregar para a cauda da Europa, sendo ultrapassados por todos os parceiros da UE. A Roménia, a dos bandos organizados de crianças na ladroagem de rua, a que nos tempos do Ceausescu era a fossa da Europa, já nos ultrapassou, “shame on us”. Já só falta, que me lembre, que um ou dois países da UE nos ultrapassem para batermos no fundo. Se isso acontecer, já sabem a que porta bater: PS & parceiros da geringonça.
José António de Sousa