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Haja nível

Não é muito crível que, ao candidatar-se à Presidência da República no escrutínio que daqui a poucos dias se realizará, Ana Gomes tenha verdadeira fé numa vitória. Parece-me mais provável a intenção de, marcando agora presença, se preparar para o ato eleitoral de 2026, onde a forte concorrência de Marcelo Rebelo de Sousa deixará de existir.

Entretanto, como nenhuma hipótese é descartável, sinto-me tentado a esclarecer que, se Ana Gomes obtiver um bom resultado nestas eleições, tal facto não me alegrará (pior ainda se jamais ela for eleita). Por trás da aparência de coragem, frontalidade e honestidade, está o populismo demagógico de uma pessoa mal-educada. Envergonhar-me-ia ter na Presidência da República Portuguesa alguém que, impunemente, chama «múmia paralítica» a um anterior chefe do Estado. Claro que ninguém é obrigado a gostar de Cavaco Silva (era claramente ele que estava na sua mira), mas imagine-se que este chamava a uma candidata qualquer «regateira de mão na anca». Cair-lhe-iam logo em cima as cabeças bem-pensantes. Ana Gomes só se exprime assim porque, intimamente, considera que, sendo «de esquerda», a sua posse da verdade suma e pura lhe confere carta branca para injuriar todo e qualquer elemento catalogado como «de direita» ou «reacionário». Os proverbiais complexos de superioridade de uma certa corrente.

Mas Ana Gomes sabe que Cavaco jamais o faria, pois, apesar de todo o seu inegável conservadorismo, é, em comparação, um cavalheiro. Aliás, o que desvaira os seus opositores («as irrelevâncias que o ódio a Cavaco congregou», no dizer de um jornalista cuja identidade já me é incerta) é precisamente a indiferença com que ele lhes reage. Lembro-me de ver Daniel Oliveira, no Eixo do Mal, espumando de fúria descontrolada, clamar que se tratava do presidente mais impopular da história da democracia portuguesa: claramente confundindo a sua opinião pessoal com a opinião do país, o que é uma caraterística bem frequente da esquerda dona da verdade, Daniel Oliveira passava por alto que Cavaco Silva, além de ter vencido à primeira volta duas das três eleições presidenciais às quais concorreu (Mário Soares também venceu duas e foi derrotado numa, mas note-se que, nas de 1986, só venceu à segunda volta), foi também, à frente do PSD, o único primeiro-ministro desde o 25 de Abril de 1974 a obter duas maiorias absolutas (até hoje, o PS só teve uma — com José Sócrates, em 2005).

Lembro-me também de Luísa Barbosa, atriz com complexos de esquerda, referir depreciativamente que Cavaco não sabia o número de cantos em que se dividem Os Lusíadas: é típico de determinadas elites pretensamente intelectuais valorizarem o literatismo; em contrapartida, se lhes perguntarem o que diz o teorema de Pitágoras ou como se enuncia o princípio de Arquimedes (já nem falo da fórmula química do ácido sulfúrico, a «fórmula dos cábulas» nos meus tempos do liceu, pois, em geral, até o aluno menos brilhante a tinha na ponta da língua), titubeiam ou refugiam-se na displicência.

De Cavaco tenho a ideia de um homem bastante conservador (confesso ter-me chocado o seu apelo a que os portugueses anotassem o nome dos deputados favoráveis à lei da eutanásia e o seu apoio de primeira linha ao abaixo-assinado pela supressão da disciplina de Educação para a Cidadania), mas que, por outro lado, se revelou sempre coerente e nunca manchou manifestamente o caráter exigível a um político: honesto, escrupuloso e eficiente. Mas voltemos a Ana Gomes, objeto desta minha crónica:

Em 2009, com Cavaco Silva na sua primeira Presidência e o Partido Socialista à frente do governo, surgiram suspeitas de escutas telefónicas por parte do gabinete do primeiro-ministro ao Palácio de Belém. Cavaco, naturalmente, pronunciou-se. Ana Gomes — desatendendo que Cavaco Silva teria as suas razões de queixa em relação ao partido do governo, as quais deveriam ser anotadas, ainda que não aprovadas acriticamente — opinou então que o PS teria de ter «muita paciência com o Presidente da República». Permito-me salientar que o insuspeitíssimo Eduardo Lourenço (que não podia ser acusado de «cavaquista») alertara para o imperativo de a figura do Chefe do Estado dever ser respeitada.

Ana Gomes na presidência da República Portuguesa significaria Portugal ombrear com a Rússia do belicoso e ordinário Jirinóvsky, com a América do desbragado Trump, com o Brasil do inqualificável Bolsonaro. Alberto João Jardim poderia dizer que a esquerda tinha agora alguém um ponto acima do seu nível (ou abaixo, conforme o critério).

 

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