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Há ténues sinais de cristal nos espelhos

“Vou fazer uma longa viagem. Não esperes por mim, madrugada clara, que te incendeias de relâmpagos e candeias que já não alumiam. Não esperes por mim, mãe, também eu desesperei, vezes sem conta, o teu regresso. E tudo o que trazias eram restos de folhagem e a tua voz sublime. Não esperes por mim, salgueiro inclinado à solicitude de um vento agreste.”

É esta a voz da poetisa, uma voz que ecoa no espaço e no tempo, carregando com ela toda a dor, toda a solidão de se ser e sentir mulher num mundo trespassado por estereótipos masculinos. Mulher plena, inteira, mulher mãe, útero, mulher terra, sintonia perfeita com a grandiosidade das deusas do universo.

Há ténues sinais de cristal nos espelhos, décimo primeiro livro de poesia da poetisa Leonora Rosado é à semelhança dos anteriores, um grito surdo onde apenas se ouve o eco das palavras, a beleza estética
da construção das metáforas, a voz das deusas do Olimpo. Neste livro a voz poética encarna muitas figuras femininas. Podemos encontrar nas frases e na semântica dos poemas a voz de Ofélia, de Helena, de
Cassandra. São vozes que se personificam nos vários estados de alma, nas várias representações do Eu que percorre todo o livro.

“Vou fazer uma longa viagem” começa por escrever Leonora Rosado. Esta é uma viagem para dentro ao encontro de todos os lugares onde a sua alma se perdeu e se encontrou. É uma jornada solitária, silenciosa,
apenas as palavras são companheiras, alimento, líquido que mata a sede de razão e de absoluto. Bálsamo que acalma a dor, o desejo, a sede de plenitude.

“E o que é o absoluto? Bem o absoluto é um poema deveras difícil, é a luminosidade que que cintila nos teus olhos, é a paixão que nos derruba para, de seguida, nos erguer… por absoluto tenho a música e a
poesia, a escultura e a pintura. Há homens que chegam a tocar o absoluto e o infinito.”

Todo os textos ao longo do livro são trespassados por um sentimento de dor, um grito lancinante ao profundo do Ser, uma vontade incontida de estilhaçar o som do pranto e do abismo interior. É esta ambição humana, a de a um determinado momento, ter o poder de usar a palavra para representar o silêncio, “assombroso fascínio” da voz poética, da metáfora da noite e dos abismos e transformar num momento sublime e grandioso.

“Pensei que fosse emudecer. A cada noite a voz mais baixa, baça, inquietantemente para dentro, quase omissa. É preciso fertilizar esse lírio, a voz. Engrandecer a flor antes que se desprenda. É preciso fazer com que o grito saia de dentro. Um pensamento alto como uma montanha ingreme, estendido como uma planície, luminoso que nem uma lamparina. O que brilha é a voz.”

Através da poesia a poetisa embrenha-se em caminhos de sombras e de dor, mas também através dela procura itinerários de entendimento para o seu mundo, para o encontro de lugares de luz, de perfeição, de
plenitude. Neste livro acompanhamos o sujeito poético na sua deambulação interior, mas também pelos lugares de luz de uma cidade nomeada Lisboa. Quero acreditar que o sujeito se sente mais seguro
nos lugares maternos, nos lugares da memória, do útero. A relação entre a cidade e a sua luminosidade e a luz que procura incessantemente no poema. Sem a poesia e a cidade, que seria do poeta!

Desse lugar de aconchego e abandono.

“O poema é a janela da cidade abrindo-se sobre nós. Com que inquietude, Lisboa, te deixarei, um dia, cidade de uma miríade de tintas. De prantos lentos e sorrisos a rasgarem as tuas vestes.”

Os sinais que se anteveem no reflexo da poesia de Leonora Rosado, são sinais de viagem de caminho, de luz conseguida nessa busca árdua que é a busca da semântica, da palavra, do sentido perfeito do poema.

“Há ténues sinais de cristal nos espelhos” de Leonora Rosado

Edições sem nome, Lisboa, 2019

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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