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David Levisky:o monge e o psicanalista

David Levisky é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), médico psiquiatra, psicanalista e professor, com mais de cinco décadas de trabalho dedicado à psicanálise da adolescência. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, editor da revista Brasileira de Psicanálise, tem seis livros publicados: Adolescência – reflexões psicanalíticas (1996), Adolescência – pelos caminhos da violência (1997), Adolescência e violência (2002), Um monge no divã (2007), Entre elos perdidos (2011) e A vida? …É logo ali (2018).

Como se deu sua passagem da psiquiatria para a psicanálise?

Meu interesse pela psiquiatria, na verdade, começou pela pediatria, no trabalho desenvolvido na Casa Maternal Leonor Mendes de Barros e no ambulatório de Saúde Mental da Escola Paulista de Medicina, hoje integrada à Universidade Federal de São Paulo. Lá conheci o saudoso professor Stanislau Krynski, fundador da Psiquiatria Infantil no Brasil, que me introduziu na psiquiatria infantil, através do estudo da deficiência mental, realizado no Centro de Habilitação da APAE de São Paulo e como estagiário do serviço de psiquiatria da Escola Paulista de Medicina. Diante da escassez de recursos para a formação como psiquiatra da infância e da adolescência e interessado no diagnóstico diferencial das psicoses infantis, obtive, graças à FAPESP, à APAE de São Paulo e ao governo francês, bolsas de estudos que me permitiram avançar em minha formação e investigação. Pude freqüentar os serviços do Hôpital de la Salpétrière e do Centro Alfred Binet, com os professores Jean Didier Duché, Sierge Lebovici e René Diatkine e confrontar a psiquiatria de base fundamentalmente organicista com um serviço capaz de integrar psiquiatria e psicanálise como áreas complementares do conhecimento do psiquismo humano. Se o aparelho psíquico depende da estrutura e da fisiologia adequadas do sistema nervoso, este depende também das atividades relacionais e afetivas para o seu desenvolvimento, as quais estimulam certas funções do sistema nervoso. As atividades simbólicas do mundo mental dependem do investimento e da integração de funções orgânicas, de experiências emocionais e de influências do meio exterior na construção do sujeito psíquico e sua subjetividade. A partir dessa percepção, aprofundei meus estudos de psicanálise. Pude ampliar minha percepção sobre a importância do inconsciente, sua estrutura, dinâmica e economia. Submeti-me, durante longos anos à análise e supervisão clínica pessoal, vindo a me tornar membro efetivo e professor de psicanálise geral, da infância e da adolescência pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Nos últimos anos, senti a necessidade de compreender o que é constante e o que é mutável no psiquismo humano consciente e inconsciente para ampliar o entendimento das transformações que estão ocorrendo na contemporaneidade. Esta preocupação me levou a desenvolver um profundo estudo na área de História Social. Alguns sociólogos acreditavam que a adolescência era um fenômeno que surgiu com a burguesia e por ocasião do Romantismo. Ideia que me intrigava, pois tudo indicava que a adolescência era um processo do desenvolvimento humano. Diante das dúvidas existentes, fui pesquisar a vida de um monge francês, cristão, do século XI, Guibert de Nogent. Pesquisa que me possibilitou perceber as diferentes velocidades existentes no processo de maturação e de desenvolvimento humano bem como suas relações com a Cultura.Tese acadêmica que resultou em um doutorado em História Social, na Universidade de São Paulo, e que depois foi transformada no livro Um monge no divã. Recebi a preciosa colaboração do meu orientador, hoje querido amigo, professor Hilário Franco Júnior, especialista em história medieval.

E seu interesse em trabalhar com adolescentes?

Meu interesse pela criança e pelo adolescente antecede minha formação profissional. Desde a minha adolescência estive envolvido em atividades juvenis esportivas e artísticas, no movimento escoteiro, como coordenador de colônia de férias. Como se sabe, a adolescência é a parte mais ativa de uma sociedade. São os adolescentes os que mais mobilizam mudanças na sociedade, enquanto vivem suas próprias transformações físicas, psicológicas e sócio-culturais. E isso me fascina pelo novo, pelo imprevisível e pelo desafio. A adolescência, do ponto de vista psicológico, é o segundo desafio, visto que, o primeiro foi sobreviver e se construir por ocasião do nascimento. Agora depende dele e do que a sociedade lhe oferece para a conquista de sua autonomia. Aprendo constantemente com os adolescentes a me conhecer e a conhecê-los melhor, à medida que estão em busca de sua identidade, espontaneidade e autenticidade. Vivem a luta para se desvencilhar do falso no encontro do verdadeiro de si mesmo.

Que experiências mais marcantes destaca ao longo da vida profissional?

Vivo tudo com muita intensidade. Não gosto de me sentir ocioso e menos ainda omisso. Assim, o que faço é marcante para mim. Ter lutado para entrar na faculdade na faculdade de medicina, ser filho de pais judeus imigrantes e refugiados da Primeira Guerra mundial, que passaram pela II Guerra ameaçados e com todas as dificuldades, conseguiram superá-las e educar os filhos para terem uma vida ética e integrada à sociedade brasileira; ter lutado pelas coisas que acreditei, pela implantação de um projeto social chamado Abrace seu Bairro, pela publicação de meus livros. Porém, as coisas que ao longo do tempo tenho descoberto e que mais me encantam são minha mulher, meus filhos, meus amigos e de forma especial, minhas netas. Elas que não saibam, mas representam o elixir da longa vida.

Quem foi Guibert de Nogent e qual a importância da autobiografia que deixou?

Guibert de Nogent é hoje meu amigo mais idoso. Ele tem contribuído para o meu desenvolvimento cultural e especializado dentro da relação histórico-psicanalítica, ao permitir-me alcançar a estruturação das mentalidades ocidentais e suas transformações. Nelas, observamos movimentos de curta, longa e longuíssima duração. Apesar dos 882 anos que ele tem a mais do que eu, ambos escrevemos sobre nossa percepção da juventude ao redor dos 60 anos. Ele foi um profundo estudioso do pensamento agostiniano, pois era comum estudá-lo entre os religiosos daquele tempo, nos séculos XI-XII. Sua vida foi destinada ao mundo monástico, no dia de seu nascimento, como prova da gratidão de seus pais e família a Deus, por tê-lo salvo, assim como à sua mãe da morte, durante o parto. Era sábado de aleluia e na impossibilidade de se fazer missa nesse dia, proibida pela liturgia da época, Guibert foi destinado a servir a Deus. Em sua narrativa confessional e de caráter autobiográfico, ele revela aspectos do contexto feudo-vassálico, das relações de poder presentes no contratualismo que permeava o mundo laico e religioso, a estrutura social dividida em classes de trabalhadores, religiosos e guerreiros. Graças à sua sensibilidade, sinceridade e retidão de caráter, realizados nesse provável acerto de contas com Deus, ele evidencia o papel da Igreja Católica como regente da vida social, política e econômica da sociedade aristocrático-clerical, em meio à denuncia de simonias, da hipocrisia na distribuição de cargos e na usurpação de bens. A Igreja esforça-se para controlar a sexualidade terrena, deslocando-a para uma sexualidade supostamente sublimada nos valores religiosos. Guibert surpreende ao revelar sua mãe, jovem viúva e atraente, seduzida por cavaleiros e cavalheiros interessados nos seus dotes físicos e bens materiais. A Igreja dessa época, em nome da preservação dos valores do mundo eclesiástico, exerce poder e controle sobre a vida familiar, social, política, econômica e transmissibilidade dos bens. Age sobre o público e o privado e na comunicação, através de sua rede de paróquias espalhadas pelo território europeu. Guibert revela, num dado momento, como a devoção religiosa levou multidões a abandonarem seus filhos, castelos e bens em nome do amor a Deus e diante do temor ao juízo final. Mais importante do que a vida para o medievo era o destino da alma no além, no pós-morte. E a ameaça aterradora estava no juízo final, que o direcionava ao paraíso celestial ou ao inferno.

De onde a ideia da pesquisa que resultou em O monge no divã?

A história dessa pesquisa é bastante curiosa e eu a relato na apresentação do livro, no item a que intitulei Uma história de muitas questões. Tudo começou diante de minha dificuldade em compreender o que levava os adolescentes a mudarem de comportamento quanto a vestuário, linguagem e hábitos de tempos em tempos, a ponto de uma geração de adolescentes não se reconhecer na próxima. Parecia-me também que a velocidade das mudanças comportamentais estava aumentando. Se na minha adolescência as diferenças ocorriam a cada 15 anos, hoje a cada cinco observam-se mudanças. Philip Áries afirma que a adolescência é um fenômeno relativamente recente, originário do romantismo. Outro fator de inquietação ocorreu quando fui procurado por uma empresa de marketing querendo saber o que está acontecendo com o comportamento dos adolescentes e quais seriam as relações entre os ritos de passagem de outras culturas e a adolescência atual. Esse conjunto de questões, entre outras tantas, estimularam-me a buscar, no longo tempo da história do mundo ocidental, documentos que me permitissem identificar aspectos da subjetividade individual, privativa e coletiva capazes de possibilitar um trabalho interpretativo de características não apenas sociais, mas reveladoras do inconsciente individual e coletivo presentes no imaginário, na utopia e na mentalidade de uma dada época e que eu tivesse meios de identificar. Com a preciosa colaboração do professor Hilário Franco Júnior, especialista em História Medieval da Universidade de São Paulo e professor convidado da École d’Hautes Études de Paris, pude ter acesso à Autobiographie de Guibert de Nogent. Obra surpreendente pela clareza como o autor transmite suas ideias, revela fatos históricos e deixa transparecer sua subjetividade, seguindo os passos de seu mentor espiritual, Santo Agostinho, inspirado em suas Confissões. A aplicação do método histórico-psicanalítico que desenvolvi, inspirado nos conhecimentos da história das mentalidades, nos princípios psicanalíticos gerais e atuais da psicanálise de crianças e de adolescentes e nos pensamentos de Foucault, quanto à análise do texto e do contexto, possibilitaram-me desenvolver esse projeto de investigação.

Ao fazer o trabalho psicanalítico com Guibert de Nogent, o que mais lhe chamou atenção?

O que mais me chamou a atenção diante do trabalho psicanalítico com Guibert foi perceber a sensibilidade e lucidez desse homem enclausurado nos desejos da mãe e da santa mãe igreja, mas que, apesar disso, a força das pressões pulsionais levaram-no a vencer as barreiras das repressões psicológicas internas e externas e a publicar sua Monodiae, ou seja, canto solo, no qual consegue, sem o saber, colocar algo de sua subjetividade, espontaneidade e autenticidade. Deixa viver o lado vivo do seu ser. Ele contribui para que se desmonte a falsa idéia do obscurantismo medieval, provavelmente fruto, pelo menos em parte, de manipulações e distorções reais ou patrocinadas pelo fanatismo e fervor religioso daqueles que detinham os poderes sobre a mídia da época.

Que paralelo podemos fazer entre o adolescente Guibert e o adolescente de hoje?

Guibert foi um adolescente como todos os demais adolescentes do mundo civilizado descritos por Aristóteles, Santo Agostinho, ele próprio e nós mesmos, ao enfrentarmos as questões inerentes ao surgimento da sexualidade adulta, das mudanças corporais, do término da “ingenuidade” e “falência” dos recursos infantis. São lutos que levam todo jovem na passagem para a vida adulta a ter que lidar com perdas psicológicas e com os desafios inerentes ao surgimento de novos objetos de amor e de recursos pessoais, até então emocionalmente desconhecidos enquanto vivência. E que são postos à prova diante das necessidades e solicitações externas e internas, mobilizadas pela entrada na vida adulta. Vida esta que implica uma conquista da emancipação em decorrência dos próprios recursos e daqueles promovidos pela(s) cultura(s) de cada sociedade.

No prefácio de Um monge no divã, Renato Mezan destaca sua severidade com a ideologia religiosa da época, a que chama de “fonte das graves mutilações psíquicas de Guibert”. Como interpreta a questão da culpa impingida pelas religiões, tanto no passado quanto no presente?

Este é um tema complexo que tentarei simplificar com o risco de prejudicar a essência da questão e de minha exposição. Penso que a culpa acompanha o homem desde seus primórdios. Maimônides, pensador judeu, nascido em 1135, portanto dez anos após o ano provável do falecimento de Guibert, escreveu em seu Guia dos perplexos que “o homem deixou-se ficar à mercê dos prazeres de sua imaginação e dos deleites de seu corpo”, inspirado num trecho do Gênesis 3:6. E sugere que “agora o homem se dá conta do que perdeu e do estado de degradação pessoal a que chegou.” Por isso, está escrito “E sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal e não o verdadeiro e o falso ou percebendo entre o verdadeiro e o falso. O filósofo prossegue, referindo-se a Adão e Eva, dizendo que após a experiência, ambos sofreram uma mudança de estado mental, que não eram mais os mesmos de anteriormente, enquanto se viam nus e nada sentiam. Continuavam a se ver nus, “após o pecado”, mas mudanças internas haviam ocorrido pelas vivências emocionais e jamais seriam os mesmos. O prazer desfrutado leva a querer mais e a prosseguir contrariando o desejo divino. A dor mental provém da frustração imposta ao desejo, preço que o homem paga para civilizar-se diante da transformação das pulsões em cultura. As religiões tentam controlar e direcionar os desejos que, sublimados, se acalmam. Parte da pulsão se transforma em cultura sublimada e transformada em afetos, sentimentos e pensamentos. Outra parte se extravasa na realização da ação adequada à cultura, é descarregada no corpo ou em ações que tem por finalidade aliviar a pressão interior. Em muitas ocasiões, tais pressões internas transformam-se em sonhos, pesadelos ou em projeções diabólicas aterrorizantes que se tornam elementos da cultura, como é encontrado em relatos medievais, nas histerias da fase vitoriana ou em outras manifestações patológicas da vida afetiva ou da alma.

Entre elos perdidos, seu primeiro romance, é resultado de alguns anos de estudos sobre Maimônides, médico, filósofo e teólogo judeu cujo legado, após nove séculos, ainda se faz vivo. Pode nos falar um pouco sobre ele?

Após ter estudado a vida do monge beneditino Guibert de Nogent fiquei entusiasmado para conhecer a vida de um judeu que tivesse vivido na mesma época e região. Maimônides (Rambam) foi o personagem que encontrei. Ele viveu entre 1138 e 1204. Nascido em Córdoba na Espanha, para se livrar das perseguições dos Almohades que desejavam conquistar a Península Ibérica, precisou migrar percorrendo o Marrocos, Egito e Israel. Homem extremamente sensível, de profunda percepção da natureza humana, estudioso da religião judaica, conseguiu integrar os conhecimentos da biologia, medicina, filosofia e da psicologia humana possível naquela época. Conhecia profundamente os efeitos medicamentosos das plantas, publicou textos médicos reconhecidos ainda nos dias de hoje. Um dos seus pensamento que me tocou profundamente, extraído do capítulo II do seu livro “O guia dos perplexos”diz: “Adão e Eva se conheceram nus, mas haviam sofrido uma transformação em seu estado de espírito. Já não eram mais os mesmos, pois a experiência emocional proveniente da relação carnal havia gerado mudanças em seus sentimentos.” Linda metáfora da qual se pode extrair grande aprendizado. Pensamentos como este me levaram que querer conhecê-lo em profundidade, mas não queria produzir novo estudo acadêmico. Queria ser mais livre para expor meus sentimentos e criatividade, fatores que resultaram em um romance: “Entre elos perdidos” no qual o protagonista principal, Eliazar Cação, dialoga com esse pensador ao tentar esclarecer seus conflitos emocionais. Eliazar suspeita ser marrano, descendente de judeus conversos à força ao cristianismo, mas que preservaram a fé judaica às escondidas., durante o período inquisitorial iniciado na Espanha e depois em Portugal, nos séculos XVI e XVII. Os ancestrais de Eliazar teriam nascido em Carção, vilarejo próximo a Bragança, em Portugal. Eliazar vive uma aventura amorosa com Sofia, turca muçulmana enquanto está casado com Claudia, neta de uma avó judia que renegou o judaísmo em função das perseguições e horrores do holocausto.  Em meio a muitas dúvidas e sofrimentos, Eliazar vive o choque de múltiplas culturas e angústias diante da ambivalência de sentimentos. Recorre ao Maimônides na perspectiva de encontrar paz interior. Mas, o inesperado acontece!

Seu segundo romance, A vida?…É logo ali, pode ser lido como uma história de renascimento, feita a partir de desafios dolorosos que tantas vezes a existência humana nos impõe. O que o motivou a escrevê-lo?

Escrever sempre representou um desafio para mim. No fundo, é uma descoberta da própria alma e um espaço de libertação, propulsores para uma nova produção, entre elas, encontrar sentido na vida diante da dor. Apreciador de chocolate, o doce amargo que alegra a vida, fui atrás de sua história e pude reunir uma experiência amarga da vida com o amargor do chocolate bem como a possibilidade de, a partir do amargo, encontrar caminhos alternativos que tornam a vida uma realização criativa e de superação. Nesse romance, Lina e Gabriela, filha e mãe, dialogam sobre um drama familiar que as envolve. Cada uma à sua maneira,   expressa seus conflitos, revoltas, ódios, amores e superações. Narram diferentes momentos da vida. A loucura ronda a família. Da dor e na busca de superação, cada uma delas encontra formas distintas para sobreviver, viver e se realizar. Lina, uma adolescente, resolve estudar história e vai atrás da história do chocolate. Gabriela muda sua visão de mundo e encontra energia e criatividade para prosseguir em sua jornada. A separação pode ser uma forma de encontro e de união.

Gabriela e Lina, personagens centrais de A vida?..É logo ali serão a prova de que é questionável a célebre afirmação do filósofo austríaco Wittgenstein, para quem “o que nos habita jamais nos abandona”?

O pensamento de Wittgenstein é correto. De fato, “o que nos habita jamais nos abandona”. Pode ficar recalcado na memória e vir à tona em determinadas circunstâncias emocionais. Por outro lado, certas qualidades positivas ou negativas adormecidas ou encriptadas podem emergir e levar as pessoas a funcionarem de formas inesperadas e aparentemente desconhecidas, estranhas, para elas mesmas. No caso de Lina e Gabriela, elas ao se reposicionarem frente às suas visões de mundo descobrem que a realização pode estar “logo ali”, ao seu alcance, desde que tenham flexibilidade e enxerguem outras formas de ver e de viver o belo.

A que atribui os recentes e frequentes casos de violência cometidos por jovens de classes sociais privilegiadas contra pessoas de condição social mais humilde?

Penso que a violência da atualidade tende a não discriminar classe social, gênero e religião, ainda que existam fatores específicos para isso. Vivemos uma quebra de valores éticos tradicionais, nos quais o público se confunde com o privado, o coletivo invade o individual, as diferenças sexuais diminuem, o sexo como elemento reprodutor caminha para ser dispensado, haja vista outras formas eficientes de procriação e de preservação da espécie. A intensidade de estímulos tende a levar o homem a uma saturação ou, ao contrário, a um afastamento e negação da realidade interior e coletiva. Tal fenômeno gera uma necessidade interior e inconsciente de novos estados de equilíbrio das tensões internas. Surgem descargas agressivas internas (suicídio e doenças psicossomáticas) ou externas (crimes e uma série de violências morais que denigrem e desconsideram o homem como sujeito). O problema é ainda mais complexo, graças à velocidade das transformações tecnológicas, à presença do ilícito e da corrupção nos poderes públicos e institucionais, assim como na mídia, de modo a favorecer um processo de identificação com o prazer imediato, distorcendo os processos identificatórios mais elaborados e profundos regidos pela ética. Eis um conjunto de fatores que invade todos os níveis sociais e culturais e ameaça os valores democráticos e de respeito ao homem. Troca-se a liberdade interior por uma liberalidade exterior desestruturante, enquanto novos patamares éticos de convivência humana não são encontrados. São processos históricos de velocidades variadas, uns lentos e de longa duração, outros que se modificam tão rapidamente, qual corredeiras em cachoeiras que transformam as mentalidades. Para muitos jovens, viver ou morrer significa: “ não estou nem aí.”

Que papel pode ser exercido pela sociedade no sentido de formar jovens mais identificados com algum tipo de consciência social que vise um mundo melhor?

Esta pergunta liga-se à anterior. Penso que um caminho mais esperançoso depende do envolvimento de todos os segmentos da rede social capazes de contribuir para o desenvolvimento da auto-estima e identidade individual, familiar, coletiva, regional e nacional. Isto se dá basicamente pelos vínculos afetivos de boa qualidade e pela educação. Amor pelo país, articulação, integração de todas as instâncias sociais responsáveis, como a classe dos políticos, instituições públicas, mídia, entidades com poder de formação de opinião pública. Não adianta apenas denunciar, é preciso agir com determinação e vontade política, mas sobretudo com amor e dedicação ao trabalho, com vistas não só ao imediato, mas olhando para as crianças, jovens e futuras gerações.

 

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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