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Crónicas de trás da ilha: Conversão

Sentava-se, habitualmente, na banquinha baixa, junto às brasas do lar, estreitando as poucas falas com a frieza do óbvio e do exacto (como se alguma coisa óbvia trouxesse contentamento, ou fossem o mar e o céu profundos em virtude da sua exactidão). Leandro vivia abaixo dos seus rendimentos – enfiava rolos de notas gradas nas frinchas da parede interna da chaminé, convicto que lá ficariam imperturbadas e longe da cobiça alheia. Não tinha filhos (nem cadilhos); por herdeira, apenas uma irmã: solteira, inteira, à beira do tal mundo da verdade, mastigado e cuspido a cada conta de terço, como nervo de carne rija.

O dia de Leandro repartia-se entre o estar e o penar. De manhã, estava entregue a si próprio, aos pensamentos oferecidos em voz alta nos seus espaços, desocupados e frios. À tarde, penava.

Leontina chegava com o almoço pouco antes do sino, fazendo questão de reter o repasto (sob o olhar salivante do irmão) até à última badalada do “Angelus”. Uma persignação barroca e um suspiro de padecimento prolongado firmavam a rendição. Por mais que sujeitasse o corpo aos trejeitos costumeiros de beatitude (estudados e aprendidos nas estampas amareladas da sua predileção), era das tais que tem mais amor às rendas das toalhas dos altares e às sobrancelhas arqueadas dos santos que ao ideal evangélico do Nazareno. O seu deus vivia trancado num sacrário (e de lá nunca saía) – jamais se conspurcaria com o pó das vielas e o suor das gentes. Cabia-lhe, julgava Leontina, a divina tarefa de trazer a justa contrição ao mundo herético de Leandro. Não queria morrer sem levar aquele “argel” à agnição da interminável lista de pecados que enumerava entre as dezenas debitadas à sua beira. Leandro tolerava a presença e o inútil proselitismo como um boi moribundo, que já nem se importa em voltear a cauda, ou abanar as orelhas, para sacudir a mosca irritante. Deixava a picada diluir-se com um certo prazer, vendo na sua estóica paciência mais mérito que em todo aquele rosário resmungado na amargura de quem se afunda numa artificial presunção de culpa.

Ao final da tarde, quando o crepitar do fogo se enamorava pela verdade das cinzas, Leontina levantava a cabeça da obliquidade das rezas e, com uma derradeira persignação fungada, despedia-se em recuamento solene e curvado (de costas para a porta), como quem abandona a presença de um velho monarca, sem trono nem reino. Leandro suspirava de alívio. A sua irmã, imersa no engano de uma santidade ganha pelo calejar dos joelhos, nem reparava que a boca fraterna permanecia cerrada durante as intermináveis catequeses vespertinas.

Morreu numa manhã de Entrudo – até nisso foi capaz de contrariar e frustrar a irmã, que perscrutava nas coincidências do calendário sinais de graças alcançadas. Na mão direita, entre os dedos de fumador, um envelope baço tingido pela sopa derramada à margem da perda repentina. “Ao cuidado do Senhor Vigário, para Deus Nosso Senhor”, lia-se.

Leontina levou a mão à boca na esperança de uma conversão derradeira (ou, melhor ainda, da revelação do esconderijo do dinheiro). Sustendo a respiração, e abreviando uma jaculatória, abriu o sobrescrito e desdobrou a folha. Os seus olhos afundaram-se. Sete palavras apenas: “Ponha na conta da minha irmã. Amém.”

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