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Contra a uniformização do pensamento europeu

Clique para ampliar A Rússia é um país imperialista, prepotente, um Estado-ogre, um bully State, que oprime a Ucrânia, país-vítima ao qual não só roubou a Crimeia como procura subtrair um extenso território da sua zona oriental, com a agravante de o fazer porque a Ucrânia quis democratizar-se e integrar o espaço cultural e político europeu. Em suma, a Rússia é má e a Ucrânia boa. Assim reza a ladainha maniqueísta e uniformizante que a governação norte-americana, com a prestimosa colaboração dos governos e dos meios de comunicação social da União Europeia, foi incutindo entre nós. Mas o que, no fundo, está a desenrolar-se é uma guerra dos Estados Unidos à Rússia. A Europa faz o que Washington lhe insinua e os meios de comunicação social europeus vão-nos condicionando e uniformizando o pensamento.

Independentemente do ocupante circunstancial da Casa Branca, a política dos Estados Unidos tem sempre (sempre) uma lógica de predomínio a nível internacional. À bruta, como no tempo de George Bush, ou sob as aparências de uma maior afabilidade, como com Obama, mas sempre um desejo de controlo e hegemonia — a nível político, económico, militar.

Ainda hoje não entendi bem por que razão foi atribuído a Obama o Prémio Nobel da Paz em 2009. No meu modesto entender, o Prémio Nobel da Paz é um galardão atribuível a quem pugne por causas justas — é, mais propriamente, o «Prémio Nobel da Justiça». Ora, como sem justiça não há paz, compreende-se que, indiretamente, se trate de um prémio pela Paz. Mas, ao cabo de escassos nove meses de governação, ninguém poderia, humanamente, apresentar feitos dignos de tal homenagem. Por isso, na altura, pareceu-me que Obama recebia o Nobel em jeito de compromisso (como se lhe dissessem: «não te damos este prémio pelo que já fizeste pela paz, e que é nada ou quase nada, mas para que te sintas compelido a algo fazer»). Se assim foi, porém, o Comité norueguês terá sido ludibriado na sua aposta, pois até a mais emblemática promessa de Obama, o encerramento da prisão de Guantánamo (onde, por não serem abrangidos pela regulamentação norte-americana em matéria de justiça, os investigadores atuam com total discricionariedade), ficou em águas de bacalhau.

Voltando à Rússia:
País com uma história de cunho pesadamente imperialista, não há dúvida de que pareceu sempre considerar os seus vizinhos eslavos mais próximos (nomeadamente a Ucrânia e a Bielorrússia) como uma espécie de «quintal privado», em cujos assuntos internos julga ter direito a intervir. Mas, embora a Rússia e o seu atual Presidente, Pútin, não sejam exatamente modelos exemplares, a situação interna da Ucrânia, sem orientação clara, deixa muito a desejar. A chamada «oposição» que há cerca de um ano derrubou o governo do Presidente Yanukóvitch na sequência das manifestações da praça Maidan, em Kiev, é uma amálgama, que vai dos pró-europeus, convencidos de que a aproximação à UE (com ou sem integração) seria a panaceia para os seus males, até aos extremistas de direita, herdeiros ideológicos de movimentos políticos que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram aliados fiéis do nazismo.

O anterior governo de Yanukóvitch era mau: corrupção desenfreada, com cada membro do gabinete preocupado unicamente em encher os bolsos, às custas de um país falido e crescentemente empobrecido — para não mencionar a natureza repressiva do regime. Contudo, tanto quanto sei, a legalidade da eleição de Yanukóvitch, quatro anos antes, não fora contestada. Por muito mau que entendamos que ele era, a verdade é que o escolhera uma maioria de eleitores ucranianos. Eu jamais votaria em homens como George W. Bush ou Silvio Berlusconi, mas a maioria do eleitorado nos seus respetivos países pareceu considerá-los estadistas de confiança — e, em ambos os casos, em mais de um ato eleitoral.

De qualquer modo, agora que Yanukóvitch pertence a um passado improvavelmente reversível, a Ucrânia mantém-se longe da estabilidade. E o Ocidente parece eufórico, fazendo vista grossa aos perigos da extrema-direita ucraniana (que, ao contrário dos bem-intencionados, porém ingénuos, pró-europeus, está bem organizada), numa empatia que pareceu não ter outra motivação senão a orientação genericamente anti-Moscovo do levantamento.

Ora, o mal-estar da Rússia quanto ao que se passa na Ucrânia (e, em especial, quanto ao apoio pessoal de políticos europeus e norte-americanos) é compreensível. Suponhamos que, num país com fronteiras comuns com os Estados Unidos (por exemplo, o México), ocorria uma revolução, o governo local (legítimo ou não, mas favorável a Washington) era deposto, e líderes russos, chineses, cubanos, norte-coreanos, apareciam por lá, ostentando a sua euforia pela orientação antiamericana da insurreição… É fácil imaginar que os EUA certamente não se sentiriam muito contentes com o cenário. A História ensina-no-lo: os americanos não hesitam em intervir, utilizando a força bruta se necessário, em países que consideram estarem a «afastar-se» da sua zona de controlo: fizeram-no (e são só uns poucos de casos) no Irão de Mossaddegh, em Cuba, no Chile de Allende, no Iraque… quantas vezes criando graves vazios de poder (na altura, Saddam Hussein — que, entendamo-nos, não era flor que se cheirasse — ameaçou que aquela seria «a mãe de todas as guerras»).

Não percebo por que haveremos de utilizar outro peso e outra medida para julgar a inquietação da Rússia por acontecimentos hostis num país seu vizinho. A Rússia está hoje cercada pela NATO ao longo de toda a sua fronteira ocidental; no Cáucaso, a Geórgia inimizou-se; receia agora que a fronteira meridional se torne igualmente hostil. A verdade é que, não assediar a Rússia, não a tornar demasiado claustrofóbica, parece, não só justo, como também prudente e avisado.

Mas admitamos que, independentemente dos pouco dignos antecedentes dos Estados Unidos, a Rússia deveria, em princípio, abster-se de interferir nos assuntos internos da Ucrânia. Aqui, surge outro problema: a Ucrânia compreende territórios que, tradicionalmente, pertenciam à Rússia e ainda são predominantemente povoados por russófonos que não se veem como ucranianos.

Até ao final do século 18, a margem norte do mar Negro (orla meridional da atual Ucrânia) pertenceu ao Império Otomano. Com a sua integração no Império Russo em consequência de diversas guerras e recontros, esses territórios foram maciçamente povoados por russos. Entre eles, incluem-se a cidade de Odessa (mandada construir pela tsarina Catarina II) e a península da Crimeia.

Em 1954 (uma data historicamente recente), um dirigente soviético, Khrushtchov, decidiu transferir a Crimeia para a Ucrânia. Não é raro as decisões arbitrárias de políticos, brincando com identidades nacionais em nome de interesses meramente administrativos, políticos ou geostratégicos, terem repercussões drásticas a longo prazo, deixando a futuras gerações a limpeza da bagunça. O mesmo poderia ser dito acerca da Transnístria, uma estreita faixa ao longo do Baixo Dniestre que, apesar de maioritariamente povoada por russófonos, fora integrada por Stálin na República Soviética da Moldávia, de língua predominantemente romena: há cerca de 25 anos, por alturas da desagregação da União Soviética, os russófonos da Transnístria insurgiram-se contra as novas leis moldavas que proibiam a utilização da língua russa e proclamaram-se independentes; em consequência da guerra que se seguiu (com milicianos moldavos e romenos a secundarem o exército moldavo no desencadeamento de um massacre da população civil que só a intervenção militar russa travou), a Transnístria tornou-se independente de facto, embora nenhum outro Estado a reconheça (nem sequer a Rússia, que, não obstante, a apoia materialmente).

Um outro exemplo é o da Abcázia e da Ossétia do Sul, duas pequenas nações arbitrariamente incorporadas, durante a administração soviética, na Geórgia, com a qual não se identificavam: em 2008, tendo declarado secessão em relação à Geórgia, somente a Rússia as salvou do esmagamento pelo exército georgiano… enquanto os Estados Unidos e a União Europeia exprimiam a sua indignação pela «ilegalidade» da intervenção russa. Em todas estas ocorrências, deveríamos honestamente reconhecer que foi a Rússia o país que melhor correspondeu às aspirações das populações locais.

E há também o caso, tragicamente atualíssimo, dos territórios do leste da Ucrânia (Donetsk, Lugansk, Mykolaiv, Mariúpol) que, maioritariamente russófonos, são hoje cenário de recontros violentos entre o governo ucraniano e separatistas russófonos. O que há de condenável em que a Rússia se coloque ao lado de uma população que a vê como sua mãe-pátria e que está a ser reprimida (para não dizer massacrada) pelo exército ucraniano? Não foram os portugueses sensíveis à situação de Timor-Leste?

As fronteiras da Ucrânia têm muito de artificial. Após a 2.ª Guerra Mundial, a União Soviética de Stálin, provavelmente o país que mais ganhou com a derrota do nazismo, incorporou na Ucrânia territórios subtraídos à Polónia, à Checoslováquia, à Hungria e à Roménia, que hoje constituem a sua parte ocidental e onde, compreensivelmente, permaneceu forte um sentimento pró-europeu; por sua vez, a zona oriental, eminentemente russófona mas incluída outrora na Ucrânia por razões administrativas, sente pouca afinidade «pátria» com a primeira.

O exército ucraniano bombardeia indiscriminada e pesadamente zonas residenciais dos territórios separatistas. Há multidões de refugiados: como seria de esperar, os russófonos partem, em maioria, para a Rússia, que, como disse, veem como sua mãe-pátria; por sua vez, os de etnia propriamente ucraniana procuram as zonas do país não afetadas pela guerra: e aí, curiosamente, abundam as reações de rejeição («volta para a tua terra; vai defendê-la dos russos e dos separatistas»).

E há também aquelas imagens terríveis de russófonos separatistas que, na cidade de Odessa, se refugiaram num edifício governamental, ao qual uma multidão de «patrióticos» energúmenos ucranianos acabou por atear fogo; alguns dos acossados saltavam pelas janelas, para serem acabados no solo, à bordoada, pelos «patriotas». Estas imagens não puderam deixar de passar nas televisões ocidentais (penso, por exemplo, no canal Euronews), mas, curiosamente, sempre de um modo que não suscita entre os espetadores europeus qualquer questionamento da ladainha «Rússia má, Ucrânia boazinha». Por vias de condicionamento da opinião pública tão velhas quanto as formas de comunicação humana, as imagens que calam na mente do espetador ocidental são antes as de Obama a arengar contra a «agressão russa». E não me consta que o Secretário de Estado norte-americano, John Kerry, se tenha deslocado a Odessa para prestar homenagem às vítimas desta barbárie, com o rosto compungido que tanto lhe deve ter custado a compor quando, em Maidan, quis homenagear as vítimas da repressão de Yanukóvitch.

Contra isto parece haver, porém, um forte argumento: violar tratados internacionais e estatutos constitucionais cria antecedentes perigosos, pelo que deveria ser evitado. Então, e o Cossovo? Quando a população de etnia albanesa desta região sérvia se levantou contra Belgrado, as forças da NATO lançaram uma guerra contra a Sérvia, vergaram-na e acabaram por induzir o restante mundo ocidental a reconhecer o Cossovo como Estado independente. Curiosamente, a Sérvia é, por razões culturais e históricas, um aliado tradicional da Rússia, pelo que somos tentados a suspeitar que o fator decisivo não terá sido tanto a justeza do levantamento no Cossovo como antes uma afronta indireta à Rússia.

Muito recentemente, nasceu em África um novo país — o Sudão do Sul. Um outro — a Eritreia — obtivera a independência duas décadas antes. Em ambos os casos, por secessão unilateralmente desejada, a partir de Estados dos quais eram antes simples regiões. Até 1990, havia dois Estados alemães, legalmente reconhecidos pela ONU e com relações recíprocas a nível de embaixada, o que, porém, não impediu a modificação de tal estatuto, com uma reunificação que implicou o desaparecimento de um desses Estados. Não estou a defender a restauração da antiga República Democrática Alemã, nem nada do género. Estou apenas a condenar o recurso a dois pesos e duas medidas. As fronteiras internacionais e os estatutos políticos são constantemente reformulados, inclusive em tempos recentes, pelo que o verdadeiro critério não parece ser um princípio de justiça universalmente aplicável, mas sim interesses geostratégicos circunstanciais.

É compreensível que se consagre o princípio da inviolabilidade das fronteiras nacionais (e internas), mas parece muito suspeito que esse princípio possa ser esbulhado em certos casos e mantido noutros, consoante os interesses de uma qualquer superpotência. Um princípio é, por definição, um ponto de partida; como tal, não é um fim em si; e de modo nenhum deveria ser visto como dogma incontornável.

No que respeita à Crimeia, a posição ocidental parece ser que, se a Crimeia fazia oficialmente parte da Ucrânia, como tal deveria permanecer (independentemente do que pensasse a maioria dos seus habitantes). Atitude hipócrita, porquanto, em última instância, a vontade dos cidadãos diretamente envolvidos é que deveria ser o critério prevalecente. E se muitos põem em causa o modo como a Crimeia regressou à mãe-pátria russa (referendo em prazo excessivamente curto e sem supervisão internacional), cabe perguntar-lhes o que opinam do modo como ela se tornara ucraniana (gesto arbitrário de um dirigente dificilmente classificável como democrático).

É certo que a Crimeia nem sempre foi russa. Há alguns séculos, Catarina II conquistou-a ao Império Otomano. Ainda lá vive uma pequena comunidade de origem turca, os tártaros. Sob a soberania russa, esta comunidade sofreu repressão e, em especial na era soviética, deportação em massa. Mas, goste-se ou não, a História não pode ser reescrita e, embora sejam o elemento populacional mais antigo, os tártaros são hoje uma minoria na Crimeia (cerca de 15% da população total). Se há que seguir a regra da maioria na Irlanda do Norte, onde os descendentes de colonos estrangeiros (britânicos) alegadamente desejam permanecer fiéis ao Reino Unido, não vejo por que não se deva aplicar a mesma regra à Crimeia, onde os descendentes dos colonos russos exprimem, em maioria esmagadora, a vontade de pertencer à Rússia. Falando de populações originais que acabaram por se tornar minorias, não foi isso o que aconteceu aos habitantes indígenas de alguns países ocidentais, como o Canadá, a Argentina e… a mais influente potência mundial, os Estados Unidos da América? Na Austrália, os aborígenes são hoje meramente residuais. Contudo, ninguém discute a legitimidade de as maiorias locais governarem esses países, se bem que os nativos fossem objeto de medidas de deportação e até extermínio, e apesar das raízes maciçamente alienígenas dessas maiorias governantes.

Conceitos como «tolerância», «democracia» e «respeito pelos direitos individuais» não são propriamente típicos da cultura ou da História russas. Fala-se, recorrentemente, da repressão contra as pessoas (homens e mulheres) que se assumem como homossexuais. Recordemos, como dos exemplos ainda assim menos gravosos, o Concurso da Eurovisão de 2014, ao qual a Áustria enviou um representante, Conchita Wurst de seu nome artístico, circunstancialmente «transgénero ocasional» (quer dizer, um indivíduo do sexo masculino que, de vez em quando, se apresenta com aparência exterior de mulher; e, como indivíduo do sexo masculino que é, também de vez em quando deixa crescer a barba, assim se tendo apresentado no festival: elegantes trajos de mulher, mas barba). Pois bem, apesar de se tratar de um inócuo festival de música ligeira, a Rússia, numa atitude de homofobia que, no Ocidente, já poucos teriam o despudor de arvorar, exigiu a exclusão da representação austríaca. Acontece é que, neste aspeto, a Ucrânia não se saiu melhor, pois fez parte do trio de puritanos zelosos contra a «pouca-vergonha» (o terceiro foi a Bielorrússia, também longe da vanguarda em matéria de respeito por minorias). Parece, pois, que, no capítulo da homofobia, a Ucrânia empata com a Rússia e não se destaca pela positiva, com a agravante de ter pretensões a país «pró-europeu» e «ocidental».

Estatutariamente, nenhum país «europeu» pode ser excluído da adesão à UE, se bem que este princípio suscita uma miríade de dúvidas: com efeito, geograficamente, o continente «europeu» não existe; do ponto de vista físico, a «Europa» é apenas a ponta ocidental de uma vasta massa continental a que se dá o nome de Eurásia ou continente eurasiano. A «Europa» é, essencialmente, um conceito histórico, cultural, político (civilizacional, se se quiser). Por isso, torna-se muito difícil estabelecer um critério inequívoco para o direito de adesão à UE: naquela aceção, poder-se-á considerar a Turquia um país «europeu»?, e a Geórgia?, e a Arménia?, e o Cazaquistão?, e… e?… De qualquer modo, a Ucrânia nunca seria menos europeia do que, por exemplo, a Polónia, a Bulgária, Malta ou Chipre. O problema é que a sua adesão está, pelo menos a curto/médio prazo, inviabilizada (devido ao peso financeiro que representaria). Os dirigentes europeus têm plena consciência deste facto, mas, impelidos por Washington, tomam partido no diferendo, alinham irrefletidamente pela Ucrânia e decretam sanções, que, se abalam a economia russa, tampouco saem barato aos Estados-Membros da UE com laços económicos estreitos com a Rússia, dadas as sanções que esta, em represália, por sua vez decreta também.

Não pretendo com este arrazoado levar os meus eventuais leitores a tomarem esta ou aquela posição. Gostaria, sim, de alertar para a necessidade de, em relação às dicotomias simplistas e maniqueístas que subtilmente nos incutem, mantermos mais ceticismo, menos autossuficiência, um certo distanciamento, um espírito crítico quanto baste.

Jorge Madeira Mendes

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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